Por Jussara Goyano
A saúde humana reside no fluxo contínuo da força vital “qi” pelos meridianos energéticos corporais. Perturbações desse fluxo podem causar doenças, sendo necessário equilibrar as forças “yin” e “yang” que o compõem, sendo opostas e complementares, auxiliando na cura do organismo como um todo. Essa compreensão básica, holística e milenar do ser humano é a filosofia central da Medicina Tradicional Chinesa (MTC), entre outros princípios presentes em suas diversas terapias, que incluem massagens, acupuntura, fitoterapia, tai chi chuan, tai chi pai lin, lian gong, práticas cada vez mais pesquisadas, difundidas e regulamentadas no Ocidente, com respaldo internacional. Na Organização Mundial da Saúde (OMS), 170 dos 194 países membros da entidade reconheceram o uso da medicina tradicional e complementar a partir de 2018, o que inclui a MTC. Destes, 50% já possuíam política nacional para sua aplicação. Ao todo, 124 países do board já possuem legislações sobre o tema. Em convergência a esse cenário, o 19º Congresso Mundial de Medicina Tradicional Chinesa, realizado na capital paulista, nos dias 26 e 27 de novembro, reuniu evidências para mostrar ao mundo a qualidade e o potencial crescente de aplicação da MTC na atenção básica de saúde. Não se trata de sobrepor saberes milenares chineses à medicina ocidental – garantem os seus expoentes –, mas, sim, de explorar os seus resultados em conjunto com outras fontes de conhecimento, no resgate a um modelo de cuidado preventivo e integral do indivíduo.
Com a missão de mostrar o estado da arte dessa abordagem, o evento reuniu um público de mais de 400 pessoas presencialmente no auditório da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap) e três milhões de participantes on-line, em mais de 70 países, segundo estimativas da organização. Foi a primeira vez que a Federação Mundial de Sociedades de Medicina Chinesa realizou o encontro na América Latina, desde sua primeira edição itinerante em 2004. Em 2022, também foram protagonistas os co-organizadores LIDE China, Base de Cooperação Internacional China Brasil de Medicina Tradicional Chinesa, com apoio da Taimin, empresa de produtos médicos.
“A realização do 19º Congresso Mundial de Medicina Chinesa, o primeiro realizado na América Latina, foi um marco nas relações multilaterais entre a China e o mundo, sacramentando a importância da saúde na governança global”, entende José Ricardo dos Santos Luz Júnior, co-chairman e CEO do LIDE China. “O congresso promoveu com sucesso o intercâmbio entre diversos especialistas internacionais, além de produzir um volume impressionante de estudos e artigos científicos que estão sendo compartilhados de forma a consolidar a importância da Medicina Chinesa na saúde global.” (O material está sendo enviado diretamente aos congressistas e em breve será disponibilizado ao público geral, de forma gratuita.) Minicursos, estudos de caso e painéis demonstraram as diversas aplicações clínicas da MTC sobretudo da fitoterapia chinesa. Com destaque, foi abordado um protocolo de tratamento de sintomas e doenças secundárias da Covid-19, envolvendo ao menos três tipos de formulações e acupuntura, com registros de eficácia para casos leves. Um dos principais defensores desse trabalho participou do evento – o ex-reitor da Universidade de Medicina Tradicional Chinesa de Tianjin e acadêmico Zhang Boli – entre outras personalidades da área e do cenário político chinês e mundial, tais como Ma Jianzhong, presidente da Federação Mundial das Sociedades de Medicina Chinesa, Eggers Rudi, diretor do Departamento de Serviços Médicos Integrados da OMS, Zhao Junning, vice-diretor da Administração Nacional de Produtos Médicos da China, Huang Luqi, vice-diretor da Administração Estatal de Medicina Tradicional Chinesa, Chen Peijie, cônsul-geral da China em São Paulo, e Fang Fang, chefe da Base de Cooperação Internacional China-Brasil de Medicina Tradicional Chinesa, e CEO da Taimin, entre presenças físicas e on-line.
O diálogo com o Brasil – A MTC responde por mais de 50% da atenção de saúde na Ásia, especialmente na China, e por 80% em algumas regiões, lembra Fang, em entrevista à China Hoje por ocasião do evento. No âmbito da saúde pública brasileira, no início de 2022, eram quase seis mil estabelecimentos ofertando alguma prática integrativa e complementar de saúde (PICS), com destaque para a MTC no escopo da Atenção Primária de Saúde (APS). Mais de quatro mil municípios brasileiros possuíam registros de procedimentos, sendo que entre 2019 e 2022 eles chegaram a mais de sete milhões em todos os níveis de atendimento médico – do primário à alta complexidade (dados do Ministério da Saúde).
A Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) foi instituída no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2006. Iniciou-se com apenas cinco procedimentos, chegando a quase 30 atualmente, oferecidos gratuitamente nos estabelecimentos de saúde pública, a critério de estados e municípios. A adesão à MTC ainda esbarra, contudo, na regulamentação da profissão de acupunturista – que é discutida, sem grandes avanços, há quase 20 anos –, além da própria regulamentação das PICs no âmbito do SUS, que ainda se encontra em andamento. A cidade de São Paulo (SP), por sua vez, é um centro brasileiro difusor da MTC, que se destaca do rol de práticas integrativas e complementares oferecidas no âmbito da saúde municipal, garante Adalberto Kiochi Aguemi, coordenador da Área Técnica de Saúde Integrativa (PICS) da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. Tai chi pai lin e lian gong são modalidades ofertadas no atendimento médico da capital paulista desde a década de 90 e do início dos anos 2000, respectivamente. Segundo Aguemi, a MTC ultrapassa a atenção básica no município e também é ofertada em hospitais e outros níveis de atendimento nas instituições públicas paulistanas de saúde.
Em defesa das regulamentações e expansão das PICs e da MTC nas esferas municipais, estaduais e nacional do Brasil, Fang ressalta, por sua vez, a eficácia de mais de 90% obtida em diversos tratamentos, registrada em mais de 20 anos de verificação clínica do uso da MTC no país. “Acupuntura, moxabustão e outras manipulações da medicina tradicional chinesa foram popularizadas nos principais hospitais do Brasil, e os principais convênios médicos pagam pelas manipulações da medicina tradicional chinesa”, relata. “Trata-se de uma medicina tradicional chinesa clinicamente excelente e muito importante para o povo brasileiro.” Fang também comenta o potencial de redução de gastos na saúde pública com o uso de terapias milenares. “O custo anual da assistência médica pública na China foi de US$ 89 por pessoa em 2019. No Brasil, no mesmo ano, o custo anual por pessoa foi de US$ 590, enquanto nos Estados Unidos chegaram a US$ 4.000”, contabiliza.
Para Ricardo Ghelman, um dos palestrantes do 19º Congresso de Medicina Tradicional Chinesa, o potencial de redução de custos de saúde pública com o uso de MTC está nas estatísticas hospitalares. Ghelman é oncopediatra, presidente fundador do Consórcio Acadêmico Brasileiro para Saúde Integrativa (CABSIN), Capítulo Brasileiro da International Society of Traditional, Complementary, and Integrative Medicine Research (ISCMR), membro consultivo da Organização Mundial da Saúde e da Rede Medicinas Tradicionais, Complementares e Integrativas Américas da Organização Panamericana de Saúde (OPAS)/ OMS. Segundo ele, a maior causa de morte nas redes de hospitais é iatrogênica, em efeitos adversos a medicamentos sintéticos, males tratáveis ou evitáveis com o uso de MTC. “Atuando só nisso já impactaria fortemente os gastos”, calcula.
Outro argumento para a adesão em escala de MTC e outras práticas integrativas e complementares na saúde pública tem a ver com as grandes prescrições (antibióticos, analgésicos e antidepressivos). O potencial de redução de gastos com esses medicamentos e mesmo do seu uso indiscriminado seria enorme, segundo o médico, com um trabalho preventivo a partir de terapias milenares.
MTC de qualidade – Quanto à qualidade das práticas em MTC, ponto fortemente discutido durante o evento, esta se associa, segundo Ghelmam, à disponibilidade de conhecimento sobre o tema, que deve reunir o maior número de evidências clínicas possível. Nesse aspecto – ele ressaltou durante o congresso –, o Brasil está em 5º lugar na produção de estudos sobre o tema, e tem à disposição, no CABSIN, mais de 1,6 milhão de publicações, incluindo mapas de evidências e tendências em MTC, que lidera o número de pesquisas sobre terapias integrativas no banco de dados.
Outro ponto central para uma MTC de excelência, para Ghelman, é a formação. “Se ela puder acontecer dentro das universidades você consegue garantir a qualidade”, disse o médico, em entrevista a China Hoje. Também é preciso, segundo ele, que a prática esteja consistentemente estabelecida na saúde pública, devidamente organizada, para que haja dados disponíveis e o devido acompanhamento, pois se trata deliberadamente de atividade baseada em evidências. “Tudo o que vai só no privado não tem regulamentação, cada um pode fazer o que quiser e você não tem o controle”, ressalta. “Imagine um consultório com acupuntura, durante dez anos, sem produzir nenhum registro da experiência… a gente precisa ter registro.”
As práticas de saúde baseadas em evidências têm três pilares para se estabelecer. O primeiro pilar é a demanda do paciente, da população, explica Ghelman. O que já existe fortemente no Brasil, de acordo com o médico. “O segundo pilar é a experiência clínica e o terceiro é evidência científica”, destaca. Tendo esses pilares ativos e atentando-se à formação de terapeutas é possível ter prática de qualidade, completa.
“A demanda é clara porque o modelo biomédico é um modelo muito limitado”, entende o especialista. “A OMS faz esse movimento (em prol das medicinas tradicionais e integrativas) a partir do reconhecimento de que pelo menos um terço da população mundial não tem acesso à medicina convencional.”
Um aspecto considerado importante por Gehlman e outros palestrantes durante o congresso é a mudança de paradigma que a MTC e outras práticas integrativas e complementares trazem sobre o cuidado com o indivíduo, em relação à medicina convencional. “É uma mudança de paradigma muito profunda, de um modelo da patogênese, do atendimento somente quando a pessoa está doente, para um modelo de salutogênese e autocuidado”, destaca, sobre o caráter preventivo da abordagem.
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