ATRAVESSANDO JUNTOS PELO VENTO E A CHUVA, A CONSTRUÇÃO DE UMA COMUNIDADE DE FUTURO COMPARTILHADO CHINA-AMÉRICA LATINA: A PRÁTICA E AS PERSPECTIVAS FUTURAS

A COOPERAÇÃO ENTRE CHINA E BRASIL I

A Iniciativa da Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade:

um esforço para o desenvolvimento harmonioso global

O conceito de “Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade” tornou-se um pilar central da política externa chinesa tanto no que diz respeito à defesa da paz e segurança internacionais conforme os objetivos das Nações Unidas, quanto na promoção da cooperação econômica com os países em desenvolvimento. A proposta chinesa enfatiza que nenhum país conseguirá obter êxitos no enfrentamento dos desafios contemporâneos, tais como conflitos regionais, a desigualdade econômica e a crise climática, se insistir em enfrentá-los isoladamente. A cooperação internacional é essencial para a prosperidade comum.

I. O fundamento das três Iniciativas Globais da China

O conceito de comunidade global de futuro compartilhado tem servido de fundamento para outras iniciativas globais da China. A Iniciativa de Desenvolvimento Global, apresentada na 76ª Sessão da Assembleia Geral da ONU, em 21 de setembro de 2021, tem como o objetivo de acelerar a implementação da Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, injetando novas forças motrizes para o desenvolvimento global sustentável. Há também  a Iniciativa de Segurança Global, proposta durante o Fórum Boao, em 21 de abril de 2022, e a Iniciativa de Civilização Global, apresentada em uma videoconferência na Reunião de Alto Nível do PCCh com partidos políticos de vários países, com o tema Caminho para a Modernização: a Responsabilidade dos Partidos Políticos, em 15 de março de 2023.

A proposta chinesa tem se traduzido em ações concretas por parte do governo. Como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a China assumiu uma posição proativa na manutenção da paz e segurança internacionais. Ao longo dos últimos dez anos, o país participou ativamente nas missões de paz das Nações Unidas e se tornou em um dos maiores fornecedores de tropas para as missões de paz da ONU entre os membros permanentes do Conselho de Segurança. Suas forças têm sido destacadas para regiões como África e Oriente Médio, atuando em operações de manutenção da paz, desminagem e assistência humanitária.

O país também é uma força chave nas missões de paz, assumindo responsabilidades como uma nação grande na comunidade internacional e sendo o segundo maior contribuinte das quotas da ONU. Além disso, a China estabeleceu centros de treinamento para capacitar tropas de países em desenvolvimento em operações de paz, compartilhando expertise e fortalecendo a capacidade global de resposta a conflitos. Essa participação ativa reflete o compromisso chinês com a estabilidade internacional e a resolução pacífica de disputas.

Lado a lado com as iniciativas voltadas para a manutenção da paz, o conceito de Comunidade de Futuro Compartilhado se materializa nas iniciativas de cooperação econômica com os demais países do mundo. De fato, a China tem desempenhado um papel crucial na promoção do desenvolvimento econômico em países emergentes, especialmente através da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR).

A Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) é composta pelo Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota Marítima da Seda do século 21, lançadas, respectivamente, em setembro e outubro de 2013 pelo presidente Xi Jinping. A ICR visa conectar os seus países participantes da Ásia, da Europa, da África e até mesmo das Américas por meio de redes de infraestrutura que promovem o comércio e o intercâmbio de pessoas, impulsionando o desenvolvimento econômico. Aproximadamente 140 países aderiram à ICR, beneficiando-se de investimentos em portos, ferrovias, estradas e parques industriais, promovendo um desenvolvimento comum.

A China estabeleceu bancos e fundos específicos, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Fundo da Rota da Seda, para financiar projetos em países em desenvolvimento. Esses investimentos têm sido vitais para as nações com recursos limitados, apoiando a construção de infraestruturas essenciais. Além do investimento financeiro, a China tem compartilhado tecnologia e expertise em áreas como energia renovável, agricultura e manufatura, ajudando países a modernizar suas economias e promover o desenvolvimento sustentável. Essa cooperação é mais uma manifestação prática da Comunidade de Futuro Compartilhado, promovendo o crescimento conjunto e favorecendo o desenvolvimento dos países do Sul Global.

Por fim, o governo chinês assumiu dois compromissos em sua política externa que estão em linha com o conceito de “Comunidade de Futuro Compartilhado” com o objetivo de perseguir a “harmonia universal” e “reformar e melhorar o sistema de governança internacional”. O primeiro deles consiste em abandonar “o velho caminho do colonialismo e do hegemonismo”. Em defesa deste compromisso, o governo chinês sublinha não ter provocado uma única guerra ou conflito para imposição de suas regras e valores, e que é signatária de mais de vinte tratados multilaterais sobre controle de armas e desarmamento, incluindo o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares. O segundo compromisso é o de “promover uma maior democracia nas relações internacionais e tornar a governança global mais justa e equitativa”. Em termos práticos, este compromisso se concretiza na defesa da reforma de algumas organizações internacionais – em especial do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, da Organização Mundial do Comércio e da ONU. Quer-se ampliar a participação dos países em desenvolvimento nos processos de tomada de decisão nestas organizações internacionais, dando-lhes maior legitimidade e aumentando a sua capacidade de cumprir com os seus objetivos institucionais.

Enfrentando a ordem internacional, o presidente Xi Jinping diz: “a governança internacional deve basear-se nas regras e consensos alcançados entre todos os países, em vez de obedecer às ordens ditadas por um único ou um punhado de países.” A China apoia a crescente reivindicação dos países em desenvolvimento por mais espaço no concerto das nações e traduz seu apoio em iniciativas como o “BRICS+”.

II. Democratização das relações internacionais

Para além da defesa de uma maior participação dos países em desenvolvimento nas instâncias internacionais, há no discurso diplomático chinês a proposta de adoção de métodos mais democráticos nas negociações internacionais. Esses métodos de ação diplomática se resumem em três palavras: 共商 (gòngshāng), 共建 (gòngjiàn) e 共享 (gòngxiǎng). Gòngshāng (共商) significa “discutir conjuntamente” e realça a importância da consulta extensiva entre as partes na busca da convergência de posições e dos interesses comuns. Todos os países devem ser ouvidos e suas necessidades consideradas. A partir de um interesse comum, por menor que seja, desenvolve-se uma relação que possa dar ensejo a outros projetos maiores de cooperação. Uma vez alcançado um acordo, as partes devem “cooperar conjuntamente” – este é o sentido de gòngjiàn (共建). Em outras palavras, deve haver contribuições conjuntas visando auferir benefícios mútuos. O compartilhamento de benefícios (共享, gòngxiǎng) é a essência da cooperação ganha-ganha defendida pelo governo chinês. A menção a esta metodologia diplomática está exposta em vários documentos oficiais. A ideia da Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade enfatiza que a governança global deve ser caracterizada por amplas consultas e contribuições conjuntas para benefícios partilhados, ou seja, “os assuntos globais devem ser discutidos por todos, os sistemas de governança construídos por todos e os benefícios da governança partilhados por todos, para que cada país seja um participante, contribuinte e beneficiário da paz e do desenvolvimento mundial”.

Gòngshāng (共商), gòngjiàn (共建) e gòngxiǎng (共享) são métodos de ação diplomática que podem ser universalmente aplicáveis e mais facilmente aceitos por não comprometer ou interferir nas particularidades de cada país. São, portanto, métodos que respeitam o princípio da não intervenção externa em assuntos externos. As bases para uma democratização do sistema internacional dependem da observância daqueles métodos de ação diplomática em que todas as partes devem participar e se beneficiar da cooperação.

Apesar dos avanços, a implementação da Comunidade de Futuro Compartilhado enfrenta significativos desafios. Alguns países, alegando preocupações geopolíticas, veem nesta proposta uma forma de expansão da influência chinesa sobre a ordem internacional. Há também aqueles que manifestam seu ceticismo sobre a implementação do conceito em práticas concretas que tenham viabilidade financeira e que sejam sustentáveis para o efetivo desenvolvimento econômico dos países emergentes. Discute-se, também, a capacidade dos países receptores de investimentos chineses de gerenciar a dívida associada. Além disso, as diferenças nos sistemas de governança e valores culturais têm sido utilizadas politicamente por potências concorrentes para gerar mal-entendidos e obstáculos à cooperação entre a China e os países do Sul Global.

Para superar esses desafios, é essencial fortalecer o diálogo internacional, promover a transparência nos projetos comuns e assegurar que as iniciativas beneficiem verdadeiramente todas as partes envolvidas. Além disso, é fundamental a defesa da reforma das organizações internacionais e da democratização das relações internacionais. Enquanto o mundo enfrenta desafios complexos, a visão de uma comunidade global interconectada e cooperativa oferece um caminho promissor. Ao enfatizar a importância da harmonia, respeito mútuo e benefício compartilhado, a China convida todas as nações a participar desta jornada rumo a um futuro melhor para toda a humanidade.

Mas há um aspecto que gostaria de sublinhar: a pouca compreensão dos países estrangeiros sobre a governança da China tem sido um fato utilizado por potências concorrentes, com destaque para os Estados Unidos, para disseminar a dúvida sobre as reais intenções do governo chinês e do Partido Comunista da China com a proposta de uma Comunidade de Futuro Compartilhado. O objetivo destas potências ocidentais é gerar uma desconfiança sobre os propósitos da política externa China com base em uma suposta “ameaça chinesa”. Ignora-se o fato de que a China tem tido uma ascensão pacífica e que sua política externa é imbuída de uma perspectiva holística e sistêmica por acreditar que todos os países estão interligados e que o futuro da China depende do desenvolvimento conjunto de todos os países.

A ignorância dos demais países a respeito da forma de organização da sociedade chinesa é um obstáculo que precisa ser superado para que as relações de cada país com a China possam produzir resultados mutuamente benéficos de maneira mais abrangente e eficaz. Sendo assim, é hora de a China explicar para o mundo os fundamentos de seu sistema político e de sua forma de organização social. À medida que os estrangeiros tiverem uma compreensão melhor da sociedade chinesa, mais entenderão o sentido e as potencialidades das iniciativas chinesas. Quanto mais o mundo entender o sistema de governança da China, mais a teoria da “ameaça chinesa” perde sua força narrativa por não ter ancoragem na realidade e mais adesão e apoio terá o conceito de Comunidade de Futuro Compartilhado.

Autor:

Evandro Menezes de Carvalho, editor-executivo-chefe da revista China Hoje, no Brasil. Professor de Direito Internacional e membro fundador do Núcleo de Estudos dos Países BRICS da Universidade Federal Fluminense (UFF), e professor de direito internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV).

 

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