Cooperação China-Brasil: Trabalhando pelos próximos “50 anos dourados”
I. Gênese da cooperação China-Brasil
Em julho de 1988, quando China e Brasil iniciaram o programa de cooperação para o desenvolvimento de satélites de sensoriamento remoto CBERS (China-Brazil Earth Resources Satellite), não imaginavam que quase quatro décadas depois ambos os países estariam aprofundando a assistência mútua e a China se tornaria o principal parceiro comercial do Brasil.
Muitos foram os percalços enfrentados tanto por Brasil quanto pela China neste que é considerado um case de sucesso de cooperação envolvendo Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I). Na década de 1980, o Brasil, assim como a maioria dos países, dependia dos serviços da norte-americana LANDSAT, que poderia cortar a transmissão a qualquer momento, ou dos satélites de alto custo da francesa SPOT. Atualmente, o Brasil é um dos maiores distribuidores de imagens por satélites, de forma gratuita, do mundo, com 700 imagens por dia para mais de 70 mil usuários (CBERS, 2014). O programa gerou grande impacto positivo nas áreas civil e de defesa dos dois países.
O investimento chinês no Brasil cresceu significativamente nos últimos anos, apesar de uma queda em 2020 por conta da pandemia do COVID 19, à medida que as relações bilaterais se aprofundaram. Em 2010, logo após a crise financeira de 2008, a State Grid Brazil Holding Company (SGHC) estabeleceu-se no Brasil e deu início a um relevante trabalho na indústria de energia. Dentre outros projetos, destaca-se o de transmissão de ultra-alta tensão (UHV) de Belo Monte de 2.500 km, que começou em 2014, foi concluído em duas fases, e contou com tecnologia de ponta em transmissão UHV. Em fevereiro de 2017 o BNDES aprovou um financiamento de longo prazo de R$ 2,56 bilhões para construção do primeiro dos dois sistemas de transmissão a serem implantados para escoamento da energia elétrica gerada pela Usina Hidrelétrica (UHE) Belo Monte, no Pará, para a Região Sudeste. A State Grid arcou com parte do valor da obra que gerou mais de 5 mil empregos diretos e 20 mil indiretos e impacta a qualidade de vida de milhões de brasileiros. Em novembro de 2018, o BNDES aprovou outro empréstimo, desta vez de USD 1,38 bilhão, para a segunda linha de Belo Monte, a Xingu Rio Transmissora de Energia (XRTE), uma subsidiária integral da State Grid Corporation of China (SGCC), para a construção do segundo sistema de transmissão de energia de corrente contínua de alta tensão (HVDC) para conectar Belo Monte ao Rio de Janeiro, no Sudeste do Brasil.
A terceira fase do projeto é a usina fotovoltaica Panati, ou Complexo Solar Panati, colocada em operação em junho de 2024 e localizada no Estado do Ceará, Nordeste do Brasil, que abriga 446.000 painéis solares em uma área total de 840 hectares. Em dezembro de 2023, a SGCC ganhou os direitos de franquia para transmissão de corrente contínua de ultra-alta tensão que transportará fontes de energia limpa, como energia eólica e solar, do Nordeste do país para a capital Brasília e outras áreas.
Já a State Power Investment Corp of China (SPICC) chegou ao Brasil em 2017 e desde então investiu 14 bilhões de reais por meio da aquisição da Pacific Hydro. A permissão para operar a Usina Hidrelétrica de São Simão por 30 anos foi o primeiro projeto de grande porte e desde 2019 mais de 1,2 bilhão de reais foram investidos para modernizar as usinas, incluindo a alteração do sistema de controle de analógico para o digital.
Em 2021, a empresa começou a participar do projeto Gás Natural Açu, em parceria com a Prumo, a BP, a Siemens e a Siemens Energy e em junho ela investiu 2,4 bilhões de reais em usinas solares nos Estados do Ceará e Piauí. Em novembro do mesmo ano, a SPICC anunciou uma parceria com o complexo solar Luiz Gonzaga, em Pernambuco, com potencial de investimento de 400 milhões de reais, e agora vislumbra a possibilidade de produzir, armazenar e transportar hidrogênio verde de fontes eólicas offshore em portos do Rio de Janeiro e do Ceará. Com investimento e construção da filial brasileira da SPICC, ela fornece energia limpa para mais de 350.000 residências locais anualmente. O projeto promove a transformação de energia limpa e de baixo carbono do Brasil e impulsiona o desenvolvimento econômico e social do país, conforme previsto no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Em 1993, o Brasil foi pioneiro ao estabelecer uma “Parceria Estratégica” com a China e, em 2004, foi um dos primeiros países a reconhecê-la como economia de mercado. Já em 2012, o Brasil foi o primeiro país da América Latina e Caribe a firmar uma “Parceria Estratégica Abrangente” com o gigante asiático. Em novembro de 2024, China e Brasil elevaram seus laços bilaterais de “Parceria Estratégica Abrangente” para uma “Comunidade de Futuro Compartilhado China-Brasil por um Mundo mais Justo e um Planeta mais Sustentável” no que, nas palavras do presidente chinês Xi Jinping, é um novo ponto de partida para os próximos “50 anos dourados” desta relação.
A visita do presidente Xi Jinping ao Brasil em novembro deste ano, confirmou a assinatura de 37 acordos, dentre eles os Memorandos: de Entendimento sobre Cooperação em Bioeconomia, para o Intercâmbio e a Colaboração sobre Tecnologia e Regulação de Pesticidas, para o Fortalecimento da Cooperação na Área de Desenvolvimento Urbano, sobre Cooperação na Indústria Fotovoltaica, sobre o Estabelecimento do Laboratório Conjunto em Mecanização e Inteligência Artificial, para Agricultura Familiar e para Promoção da Cooperação Econômica e Comercial sobre Micro, Pequenas e Médias Empresas. Também foram firmados o Contrato de Captação entre o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o China Development Bank (CDB), e o Plano de Ação entre o Ministério da Saúde do Brasil e a Comissão Nacional da Saúde da China para os anos 2024-2026. Foram aprovados outros diversos Memorandos de Entendimentos como a Cooperação para o Desenvolvimento Sustentável da Mineração, a Cooperação em Turismo e o Intercâmbio e Cooperação no âmbito do Desenvolvimento Econômico. China e Brasil assinaram ainda o Plano de Cooperação que unifica o Novo PAC, o Plano Nova Indústria Brasil, o Plano de Transformação Ecológica, o Programa Rotas da Integração Sul-americana e a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR).
Uma das grandes adversidades enfrentadas por China e Brasil é seu grande tamanho territorial que exige infraestrutura tecnológica inovadora para distribuir a energia produzida no Norte e Nordeste do país (caso do Brasil) e Noroeste (no tocante à China) até grandes centros urbanos, como Sudeste do Brasil e à China Oriental e ao Centro-Sul do país asiático. E é justamente pelo know how que China e Brasil se alinharam. O Brasil tem uma longa experiência em desenvolvimento de energia hidrelétrica, a exemplo a de Itaipu, construída em 1984 (PEDONE, 1989), enquanto a China lidera em áreas como energia solar e eólica, e transmissão de eletricidade. A colaboração entre os dois países tem importância significativa para o avanço do desenvolvimento sustentável global. O objetivo é garantir um fornecimento constante de energia limpa, especialmente em áreas com baixa densidade populacional, grande potencial de crescimento e alto interesse em preservação socioambiental.
Em 2023, os investimentos chineses no Brasil alcançaram a marca de US$ 1,73 bilhão, aumento de 33% em relação a 2022, onde dos 29 projetos agendados, pouco mais de 70% foram direcionados para energias verdes e setores relacionados (CEBC, 2024). A concretização do valor dos investimentos chineses no Brasil aumentou em número de projetos efetuados, de 27% para 88%, entre 2022 e 2023.
A cooperação China-Brasil ainda coloca em pauta outra discussão: a substituição do dólar, principalmente entre países membros do BRICS plus, por renminbi/yuan (CNY). Como o Brasil possui um superávit em moeda chinesa, a CNY pode ser usada em transações comerciais com respaldo do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) o que poderia aumentar a capacidade do Brasil de reinvestimento em outros mercados.
Ainda na meta pela redução de carbono e promoção da energia verde, nos primeiros nove meses de 2024 foram vendidos mais de 120.000 veículos elétricos leves, um aumento de 113% em relação ao ano passado. A fabricante chinesa BYD possui uma unidade de produção de baterias de fosfato de ferro-lítio em Manaus, Amazonas. Isso significa que o Brasil pode montar e produzir baterias localmente, promovendo assim a adoção e a aplicação de tecnologias verdes, acelerando a eletrificação do transporte público e impulsionando o desenvolvimento de novas tecnologias energéticas locais com barateamento dos preços.
II. Futuro Compartilhado entre China e América Latina
Atualmente, o multilateralismo está desafiado pelo unilateralismo na sociedade internacional. E a China promove a construção de uma Comunidade de Futuro Compartilhado para a Humanidade, defendendo o multilateralismo. Um relacionamento coeso entre as nações permitiria finalmente a efetuação da chamada nova ordem onde o sul global também tivesse um protagonismo mais focado nos países em desenvolvimento.
Os investimentos chineses de 2024 mostram uma redução nos países desenvolvidos como nos Estados Unidos, Austrália, União Europeia e Reino Unido, todos na comparação com o ano de 2023. Em contrapartida, aumentaram no Brasil e em outras regiões da América Latina como Peru, Bolívia, Chile e El Salvador. A China é a protagonista central e emblemática da nova realidade internacional ao mesmo tempo em que o país é uma nova potência econômica, uma referência essencial na política internacional e o centro das atenções políticas regionais (JAGUARIBE, 2011). Em 2018, América Latina e Caribe foram incluídas na Iniciativa Cinturão e Rota com o objetivo de ampliar a malha rodoviária e ferroviária, construir portos e operar demais obras de infraestrutura.
Desde então, Chile, Peru, México e Brasil têm sido os principais destinos de investimentos chineses de 2018 a 2023. Empresas chinesas passaram a investir bilhões de dólares na exploração de lítio a partir de 2016 no Chile, incluindo a compra de 25% da Sociedad Química y Minera de Chile (SQM) pela Tianqi Lithium. No Peru, o aumento dos investimentos se deve ao setor de mineração mas, principalmente, ao projeto de US$ 3 bilhões no Porto de Chancay, inaugurado em novembro de 2024. No caso do México, ressalta-se os setores de Tecnologia da Informação e manufaturas de alto padrão.
A relevância da América Latina foi destacada na primeira reunião ministerial do Fórum China-CELAC de 2015, realizada em Beijing, assim como a importância da ICR foi salientada na Declaração de Santiago redigida no início de 2018. A carência de infraestrutura adequada é um déficit para a região o que limita investimentos econômicos e acesso ao mercado. Essa é uma nova oportunidade para os países da América Latina e Caribe fazerem deslanchar suas políticas de bem-estar social e redução da pobreza com avanço científico e tecnológico.
China e Brasil têm fortalecido setores onde já havia cooperação como é o caso do setor de energia elétrica, aportes em tecnologia e parque industrial. O número de projetos segue em nível elevado com prioridade para o agronegócio, a mineração, o varejo, a indústria de óleo e gás embora as áreas de pesquisa e inovação necessitem de mais incitamentos (CEBC, 2023). A grande área das energias renováveis e todos os aportes necessários para produção e distribuição ainda tem grande potencial de crescimento. Prova disso é que a área da eletricidade liderou a atração de investimentos chineses no Brasil em 2023, com participação de 39% em termos de valor e de 66% pelo critério de número de projetos. O setor automotivo alcançou 33% do valor aportado, um ganho de cinco pontos percentuais em relação ao ano anterior e, desde 2021, todos os projetos chineses no Brasil foram direcionados a veículos 100% elétricos ou híbridos.
O Brasil possui uma das matrizes energéticas mais limpas e renováveis do planeta, com a maior disponibilidade de água doce do mundo, capacidade de suprir 22% da demanda do mercado de carbono global e com grandes reservas de minerais essenciais para a transição energética. O compromisso chinês com investimento em novas infraestruturas no exterior favorece o Brasil que tem como um de seus gargalos justamente a transição energética. O compromisso de Beijing em atingir a neutralidade de carbono até 2060, como forma de apoio ao combate às mudanças climáticas, coloca os projetos de energia limpa no topo das prioridades cooperativas entre China e Brasil. Como salientado pelo presidente Xi Jinping em visita oficial ao Brasil em 2024 em que se celebram os 50 anos de relações diplomáticas entre os dois países, “os próximos 50 anos marcarão os anos dourados na relação China-Brasil”.
Autor:
Tatiana Molina, professora na Southwest University of Science and Technology (SWUST) e membro do Center for Latin American and Caribbean Studies (CECLA) Sichuan, China. Vice-coordenadora do Centro de Estudos sobre China Contemporânea e Ásia – CEA/NEA, da Universidade Federal Fluminense.
Referências:
CBERS: Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres. CBERS: 2014.
Disponível em: <http://www.cbers.inpe.br/hotsite/arquivos/Folder_CBERS.pdf>. Acesso em: 28 fev. 2025
CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA. Investimentos chineses no Brasil 2023. Rio de Janeiro: Conselho Empresarial Brasil-China. 03 set. 2024. Disponível em: <https://www.cebc.org.br/2024/09/03/investimentos-chineses-crescem-33-no-brasil-em-2023-com-foco-em-energias-verdes-e-carros-eletricos/>. Acesso em: 28 fev. 2025.
JAGUARIBE, Anna. China: estratégias de modernização alternativa. Revista Desenvolvimento em Debate, vol.2, n.2, pp.39-49, 2011.
PEDONE, Luiz. State autonomy, political power and public policy : a study of Brazilian development. University of Massachusetts, maio 1989.
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