Wu Tong, do Silk Road Ensemble, conquista pela segunda vez o Prêmio Grammy.
Os ocidentais presentes na plateia da 59ª edição do Prêmio Grammy ficaram impressionados com os cinco prêmios conquistados pela cantora Adele e curtiram a épica apresentação de Beyoncé cantando um medley de cinco músicas. Ao mesmo tempo, os fãs chineses de música vibraram com o prêmio de Melhor World Music conferido a Wu Tong, do Silk Road Ensemble, pelo álbum Sing Me Home. Foi o segundo Grammy de Wu.
“Estou feliz, mesmo sem estar surpreso, por ter conseguido o prêmio, porque significa que mais pessoas irão apreciar a beleza especial e o caráter inclusivo de nossa música”, declarou Wu Tong a China Hoje. E acrescentou: “Ao longo dos dezoito anos de existência, o grupo dedicou-se a unir diferentes culturas por meio da música, na esperança de que isso ajude pessoas de diferentes nacionalidades e crenças a se respeitarem e se entenderem melhor. Este, para mim, é o verdadeiro sentido da Melhor World Music”.
Aplainar discordâncias
Nos últimos anos houve uma calorosa reação da comunidade internacional à Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota, proposta pela China. O projeto reúne as esperanças de cooperação, intercâmbio e desenvolvimento de vários países. Já em 1998, ciente da importância das trocas e fusões de estilos musicais, Yo-Yo Ma, inspirado pelas culturas e tradições dos países ao longo da antiga Rota da Seda, decidiu formar o Silk Road Ensemble. Diretor-artístico do grupo, Ma convidou então compositores e intérpretes de várias partes do mundo, com o objetivo de “explorar o modo pelo qual as artes podem promover o entendimento global”.
Wu Tong resumiu a missão do Ensemble: “eliminar discordâncias com música”. Um dos fundadores do grupo, Wu participa do Ensemble desde 1999, quando chamou atenção depois de uma palestra na Universidade de Michigan, em que fazia uma explanação da história dos 16 instrumentos de sopro tradicionais chineses. No grupo, além de tocar esses intrumentos, Wu desempenha múltiplos papéis, como compositor e vocalista. “O que criamos é uma espécie de música crossover, misturando diversos estilos, da música folclórica tradicional de vários países à música clássica, moderna e popular. Além de tocar instrumentos, também cantamos, dançamos e tocamos rap. Não nos limitamos a qualquer estilo definido. Nosso grupo busca um espaço aberto, onde cada música possa se expressar livremente. Eu introduzo elementos chineses na nossa música, inclusive rock, música folclórica tradicional e até mesmo ópera local”, afirmou Wu.
Wu não economiza elogios ao trabalho de Yo-Yo Ma à frente da Ensemble. “Ele é o mais educado e atencioso de todos os membros do grupo. É modesto e bondoso com todos. Quando está no palco, revela com seu violoncelo várias facetas humanas, com frequência com uma paixão que desperta nas pessoas o entusiasmo interior pela vida, mas às vezes criando também uma ambiência suave, refinada, delicada”, disse Wu. “E ele também é extremamente diligente, e constantemente aprimora seus talentos. Nunca o vi intimidar-se com nenhum desafio musical.”
Yo-Yo Ma também faz o máximo possível para criar uma atmosfera de liberdade no grupo, onde os músicos possam expressar suas ideias. “Ele é um mestre da música. Pode se mostrar dogmático, sem que ninguém faça disso um problema. Mas sempre ouve. Durante um ensaio, tende a ficar quieto e dar aos outros a oportunidade de dizer o que vai pela sua cabeça. Isso faz com que a gente se sinta valorizado e participante. Sua dedicação à música e sua atitude calma quando sob pressão são admiráveis. Yo-Yo é para mim um amigo e um mentor”, diz Wu.
Ao explicar a abordagem de criação musical do grupo, Wu afirma: “Um compositor geralmente é responsável por uma peça musical, mas às vezes dois de nós podem trabalhar juntos. Às vezes, vários trabalham juntos no improviso de uma melodia. Há diversas maneiras de criar peças. Se você está improvisando, outros membros do grupo ajudam, harmonizando-se com o seu tema, ou então criando crescendos que fazem sua performance deslanchar”.
Viralizou na internet um vídeo intitulado, em chinês, “Yo-Yo Ma encantado com a performance do dueto entre Wu Tong, tocando sheng (instrumento de sopro chinês), e um indiano tocando percussão”. Wu comentou: “Esse foi um exemplo perfeito de improviso musical, e também de confiança”. A performance teve lugar em um concerto em Boston para celebrar o 15o aniversário de fundação do grupo. “Quando nossa apresentação terminou, a plateia queria mais, e pediu um bis. Mas nessa hora eu não quis tocar uma peça tradicional no sheng , porque senti vontade de dar à plateia algo novo. Então improvisei aquela melodia no sheng. Inspirado, nosso percussionista indiano Sandeep Das se juntou a mim numa performance de improviso”, explicou Wu. É raro numa apresentação de música clássica que um músico intervenha improvisando, porque nesse caso os músicos tocam seguindo uma partitura musical. “Mas para nós a música feita esponta-neamente é bem-vinda. Nós improvisamos uma peça no palco, e desse modo instigamos a plateia, que é pega de surpresa, e também mantemos um diálogo musical onde cada músico é obrigado a reagir instantaneamente ao que o outro faz, e vice-versa, sem nenhuma combinação prévia.”
Quanto mais as pessoas ouvem o Silk Road Ensemble, mais fascinadas ficam com os sons não familiares, e às vezes inimagináveis, que o grupo cria. “A música folclórica chinesa e a indiana se fundem bem. A música tradicional iraniana também se complementa bem com a música clássica europeia. Nós fazemos com que essas fusões musicais aparentemente inviáveis se tornem possíveis”, afirmou Wu.
À medida que o grupo produz novos álbuns e faz turnês regulares, conquista cada vez mais fãs. Além de se sentirem atraídas para a sua música singular, as pessoas também percebem a oportunidade de entrar em contato com diferentes culturas em um nível que vai além do musical. O jornal Vancouver Sun descreveu-o como “um dos grandes grupos do século 21” e o Boston Globe como “um laboratório musical itinerante sem paredes”.
O álbum vencedor do Grammy, Sing Me Home, destaca além das peças de membros do grupo, obras de outros compositores, de vários países e regiões, como Índia, Ásia Central e África. “Diferentes nações têm diferentes interpretações de ‘lar’. A canção Going Home (‘Volta ao Lar’), que eu canto no álbum, recria uma melodia nostálgica de uma peça sinfônica de Dvořák. Ela interpreta ‘lar’ como um paraíso para a própria alma. As diferentes interpretações de ‘lar’ tornam possível que cada um encontre pontos comuns de familiaridade”, disse Wu.
Ma, vencedor de 18 Grammys, escreveu em seu site: “Desde o seu início, o Silk Road Ensemble tem tratado de desvios e explorações, de novos encontros e de retornos ao lar. A música composta, arranjada e executada pelos membros do grupo e por nossos amigos em Sing Me Home é um tributo à cultura, a como ela nos ajuda nos encontros, conexões e na criação de algo novo”.
“Nossa cultura contém muita sabedoria e refinamento artístico, e precisamos redescobrir isso”, diz Wu Tong
“Além de ser uma expressão da aprovação de nossos esforços nos últimos dezoito anos, acho que o Grammy pode também ter indicado a postura mental dos jurados do prêmio em meio à globalização intensificada, que ainda é pontuada por retrocessos e por exemplos de estranhamento cultural entre certas nações”, disse Wu.
Músico Crossover – A maioria dos chineses ouviu Wu Tong na sua condição de vocalista da banda de rock Lunhui (“Samsara”). O grupo sacudiu o país com seu sucesso As Chamas da Estrada de Yangzhou, no início da década de 1990, quando Wu ainda era um estudante, especializando-se em instrumentos de sopro chineses folclóricos, no Conservatório Central de Música.
Wu foi o primeiro músico chinês a fundir rock e música folclórica chinesa, tocando sheng em músicas de rock. Ele adaptou As Chamas da Estrada de Yangzhou de um famoso poema de 1205. “Tentei destacar por meio do rock a masculinidade e o heroísmo essenciais dos antigos generais, como expresso no poema da dinastia Song. Existe realmente uma afinidade entre o poema e o rock, porque o rock evoca o poder pleno, a grandiosidade e a beligerância do combate. Minhas últimas obras, como Man Jiang Hong (“O Rio Todo Vermelho”), têm um sabor marcial similar”, disse Wu.
“Não gosto de me limitar a um estilo específico”, explicou Wu. “As pessoas conhecem inúmeras belas paisagens em sua vida. Há muitas flores bonitas e esplêndidas, e todas são maravilhosas. Não temos que apreciar apenas uma e ignorar as demais. O que eu aprecio é a naturalidade.” O mesmo sente ele em relação a estilos musicais.
Quando ingressou no Silk Road Ensemble, fascinado como era com o sheng, muitos acreditavam que Wu Tong fosse abandonar o rock, até surgir, em janeiro de 2016, uma nova versão de As Chamas da Estrada de Yangzhou.
“Nunca disse que iria abandonar o rock, e nunca achei que algum estilo de música não fosse adequado para mim. Penso que há elementos da música folclórica que podem ser incorporados ao rock, e vice-versa. O rock não denota necessariamente cinismo e rebeldia. Acho que ele pode também ser positivo e luminoso, até delicado. O rock me trouxe liberdade e individualidade, assim como poder. É importante dar-lhe um emprego e uma expressão adequados, depois que se domina a linguagem. Posso usar qualquer estilo na minha música porque todos são fruto do saber humano. Misturá-los e criar música melodiosa é a minha tarefa e o meu interesse”, disse Wu.
Música chinesa para todos
A carreira de Wu está intimamente associada ao sheng. Wu nasceu em uma antiga família culta de músicos folclóricos e começou a aprender a tocar o instrumento com o pai, aos cinco anos de idade. “Primeiro eu tocava um pequeno sheng muito bonito, presente de meu avô. Seis meses depois, meu pai o substituiu por outro maior, que ele mesmo fez com pau-rosa, muito pesado, com 21 tubos de metal. Ficar segurando-o por pelo menos quatro horas por dia era realmente uma tortura para uma criança de seis anos de idade.”
Wu começou a gostar mesmo do sheng por volta dos 12 anos de idade. “Então, depois de atravessar o estágio difícil do iniciante, comecei a dominar todas as habilidades básicas da execução do sheng, e era capaz de tocar algumas melodias agradáveis e canções. Cheguei a ficar em primeiro lugar num concurso nacional.”
Mais tarde, Wu matriculou-se na escola secundária ligada ao Conservatório Central de Música, e em seguida passou a frequentar o conservatório, graduando-se em música folclórica tradicional chinesa. “Era um dos três melhores da minha classe. Eu não tinha mais nada a aprender das técnicas de execução do sheng e começou a crescer em mim um sentimento de insatisfação. Na realidade, naquele tempo eu não havia apreendido a verdadeira beleza do sheng, pois me faltava o necessário acúmulo de experiência de vida.”
Em busca das raízes
A história do sheng remonta ao período pré-Qin (c. 2100–221 a.c.), quando era um instrumento importante para a música da corte.
“O sheng tem fortes raízes na cultura tradicional chinesa. Sua estrutura física é na realidade uma imitação de coisas vivas, em crescimento. O sheng está relacionado à primavera, quando tudo cresce. Sua música evoca um sentimento agradável de elevação. É muito melodioso e elegante quando o ouvimos no Festival da Primavera. Nunca faz as pessoas se sentirem tristes. Mesmo assim, a alegria que comunica é moderada e refinada, nunca excessiva. Portanto, harmoniza-se com o conceito de Confúcio da ‘regra de ouro’”, afirma Wu.
Wu conta como flertou com o rock na faculdade, em um esforço para encontrar uma nova forma de expressão musical. Para ele, sua vida musical foi um contínuo acréscimo até os 40 anos, e a partir daí uma subtração. Antes de fazer 40 anos, Wu era obcecado por aprender diferentes formas de expressão musical e diferentes instrumentos. Então, um dia deparou com A Ode ao sheng, de Pan Yue (247-300), da dinastia Jin (266-420), que versa sobre a estética do sheng.
Ele elogia o sheng como um instrumento maravilhoso, porque o som que produz é correto, mas não é rígido, e pode ser melodioso e melífluo, sem ser enfeitado demais. “De repente, soube o que me faltava aprender a respeito do sheng, e por que estava insatisfeito com ele.” Por cerca dos dois anos seguintes, Wu recusou todos os convites para apresentações para se dedicar a ler e pesquisar textos antigos sobre o sheng, para compreender sua evolução e essência espiritual.
“O som que o sheng produz é harmonioso mas simples. Sua essência espiritual está na harmonia entre os seres humanos e a natureza. No entanto, as diferenças entre as partituras musicais dificultam adaptar a música antiga aos sons modernos. Embora as pessoas tentem recriar obras de música clássica antiga, como Altas Montanhas e Águas Correntes, tais tentativas são apenas réplicas modernas produzidas a partir de conjeturas. Assim, quando eu toco obras clássicas no sheng, simplesmente me concentro em seu espírito, e tento criar um som que reflita a harmonia entre a humanidade e a natureza. Mas para isso preciso primeiro encontrar minha paz interior, e só então consigo transmitir o som harmonioso que pode trazer às pessoas um pouco de consolo”, disse Wu.
Assim, depois dos 40, Wu tentou simplificar sua forma de expressão musical. “Mas não é fácil alcançar o poder da simplicidade, ou se ater ao simples. Primeiro, você precisa ter confiança na sua cultura, e estar ciente de que a simplicidade pode ajudá-lo a encontrar a paz mental. Isso requer que tenha alcançado certo grau de cultivo interior”, explica Wu.
Nos últimos anos, Wu tem procurado promover a música tradicional chinesa por meio do Silk Road Ensemble. “Acho que o mais importante é ousarmos ser nós mesmos. A imitação não fará com que você supere os outros. Quando você é capaz de apresentar a própria beleza, singular e única, os outros começam a apreciá-lo. Nossa cultura contém muita sabedoria e refinamento artístico, e precisamos redescobrir isso. Se esses aspectos puderem ser usados em nossa música e em nossas letras, isso ajudará a moldar nossa beleza e nosso refinamento, que são únicos. Então, colecionar prêmios globais será algo natural”, concluiu Wu.
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