O dia em que Zezé falou em chinês

Lançada em Pequim nova edição de O Meu Pé de Laranja Lima, um sucesso brasileiro na China

Por Rafael Henrique Zerbetto e Wei Mingxin

Na noite do dia 15 de maio, quando se comemora o Dia Internacional da Família, houve a cerimônia de lançamento da nova edição chinesa de O Meu Pé de Laranja Lima, obra de José Mauro de Vasconcelos que encantou gerações de brasileiros e se tornou um sucesso de vendas no mercado chinês desde o lançamento da primeira edição.

Esta obra infantojuvenil, de 1968, foi traduzida para 52 línguas e publicada em 19 países. A versão chinesa, traduzida por Wei Ling e publicada em 2010, que vendeu 400 mil cópias na China, recentemente foi adicionada à lista de leituras recomendadas aos estudantes chineses, o que deve impulsionar ainda mais sua popularidade no país asiático. No Brasil e no exterior, O Meu Pé de Laranja Lima também foi adaptado para teatro, novelas, filmes e quadrinhos.

Para discutir a importância dessa obra, preciso recorrer à minha própria história de vida: quando fui alfabetizado, me tornei leitor de obras infantojuvenis de autores brasileiros, e um dos primeiros livros que li, que se tornou um dos meus preferidos, foi justamente O Meu Pé de Laranja Lima. Dali em diante me tornei um leitor voraz, e essa paixão pela literatura me levou a cursar estudos literários na Unicamp e construir uma carreira nessa área. Isso ilustra a importância da literatura infantojuvenil para transmitir o hábito da leitura e a paixão pelos livros às novas gerações.

E por que O Meu Pé de Laranja Lima fez tanto sucesso entre o público infantil? Primeiramente, por sua originalidade, visto tratar-se de uma obra que se distancia dos clichês presentes neste tipo de literatura. Muito disso deve-se ao fato de ser um livro autobiográfico, baseado na infância do autor. Mas contar sobre a própria infância não basta para se criar uma boa história: mais do que ter tido uma infância singular, José Mauro de Vasconcelos soube selecionar o que contar e como contar.

Narrada por uma criança, a história precisa de uma linguagem peculiar que poucos autores conseguem dominar tão bem. Adaptar essa linguagem a um idioma estrangeiro, especialmente para um público infantojuvenil com uma base linguístico-cultural tão diferente, é outro desafio particularmente complexo e que pode ser fundamental para o sucesso da obra no estrangeiro.

Por fim, ocorre uma identificação muito forte entre o jovem leitor e Zezé, uma vez que ambos experimentam os mesmos medos, frustrações e indagações diante do lento processo de autoconhecimento e experimentação do mundo que transforma meninos em jovens. Faz parte desse processo o sentimento de ser incompreendido pelos adultos, uma vez que a visão de mundo da criança muda conforme suas experiências, e à medida que envelhecemos, aquelas ideias fluidas e mutáveis vão aos poucos se assentando para cristalizar certezas.

A relação entre Zezé e Manuel Valadares, o Portuga, merece particular atenção, tanto por representar esse confronto entre a visão de mundo da criança e aquela de um homem maduro quanto pela forma como esses dois personagens interagem ao longo do livro, indo de inimigos a melhores amigos conforme Zezé vai amadurecendo e aprendendo a ver as coisas de outra forma.

Zezé expõe seu mundo interior ao expressar seus sentimentos diretamente ao leitor e também ao desabafar com seu querido pé de laranja lima, carinhosamente chamado de Minguinho. A árvore, como sabemos, não pode responder, é Zezé quem responde a si mesmo sem se dar conta disso.

Essa interação de um menino com seus dois mundos, o interno e o externo, seria um elemento de universalidade capaz de explicar por que esta obra caiu no gosto do leitor chinês? Os sentimentos e o amadurecimento são experiências universais, mas podem ser sentidos e interpretados de maneiras muito diferentes, conforme nos mostra a bela capa desta nova edição, cuja arte traz o estilo da antiga técnica chinesa de papel recortado, que costuma ser ensinada nas escolas brasileiras, sendo, por isso, familiar aos povos do Brasil e da China. Segundo, por conta do desenho com duas silhuetas, uma de criança e outra de adulto, ao pé da árvore, permitindo múltiplas interpretações: o adulto seria o pai de Zezé? Manuel? Ou o próprio Zezé?

Durante o evento de lançamento dessa nova edição chinesa do livro, João Batista Magalhães, ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Pequim, fez uma análise de grande importância, comparando o movimento modernista brasileiro ao Movimento Quatro de Maio na China. Os dois movimentos tiveram muitos pontos em comum, entre eles a pesquisa estética livre e a busca por uma literatura na língua efetivamente usada pelo povo, que levou ao surgimento de uma literatura chinesa para as massas e de uma literatura brasileira não mais atada às regras e formalidades do português europeu.

João também apontou os processos de urbanização e industrialização vividos pelo Brasil ao longo da primeira metade do séc. XX, bem como os avanços na alfabetização, como fatores que caracterizam a sociedade brasileira da época em que o livro foi escrito. Essa ambientação é um caminho interessante, embora ainda pouco explorado, para apresentar a literatura brasileira do século passado ao público chinês, uma vez que também a China experimentou um rápido processo de alfabetição, industrialização e urbanização.

“É muito importante os povos, brasileiro e chinês, se conhecerem melhor, e a melhor forma de um povo conhecer um outro é através da cultura. O lançamento do livro, e os outros que estamos pensando em programar, música, espetáculos e arte brasileira, é muito importante para solidi- ficar e aumentar o relacionamento entre o Brasil e a China”, afirmou o ministro.

Já a visão chinesa a respeito da obra ficou por conta do debate entre Zhang Mingzhou, ex-presidente do Conselho Internacional de Literatura Juvenil, e Wu Xinxin, pesquisadora da Universidade Normal de Pequim.

Zhang Mingzhou destacou a maneira como o autor elaborou a história, com o tom de uma criança; os detalhes incluídos na narrativa são muito acurados, permitindo que os leitores entrem naturalmente no mundo de Zezé. Wu Xinxin refletiu sobre o conteúdo do livro e propôs uma
pergunta: como se deve educar ou cuidar de uma criança? Devemos tratá-la como um adulto em miniatura ou deixá-la crescer ao seu próprio modo? “José Mauro de Vasconcelos encerrou a obra com uma citação, ‘POR QUE CONTAM COISAS ÀS CRIANCINHAS’, isso tornou a literatura mais do que apenas literatura infantil, ela tem mais dessa extensão temática da exploração da humanidade e da vida”, explicou a pesquisadora.

O lançamento da nova edição do livro também contou com atividades artísticas: alunos de uma escola primária encenaram, em chinês, um trecho do livro, e estudantes de língua portuguesa da Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim apresentaram a canção-tema da primeira telenovela baseada nessa obra, que foi ao ar em 1970 pela extinta TV Tupi.

O cinquentenário das relações diplomáticas Brasil-China também nos convidaa lançar um olhar especial sobre essa obra emblemática: assim como o menino Zezé foi gradativamente se aproximando do velho Manuel Valadares, a ponto de considerá-lo seu melhor amigo, também o Brasil, uma nação  jovem, que celebrou o bicentenário de sua independência em 2022, foi gradativamente aprofundando sua amizade com a China, uma das civilizações mais antigas do mundo, ao longo destes 50 anos.

No início do livro, Zezé e Manuel não se conheciam e desconfiavam um do outro, pois é natural da psique humana ter receio de tudo o que não conhecemos. Foi a interação entre ambos que nutriu a confiança mútua e os aproximou. Este exemplo nos mostra que o avanço das relações Brasil-China exige maior interação e troca de conhecimentos entre os dois povos. É preciso que o leitor chinês tenha mais acesso à literatura brasileira e vice-versa, e para isso são fundamentais iniciativas como a publicação desse livro e sua adição à lista de leituras recomendadas aos estudantes chineses.

Que a amizade Brasil-China, fomentada pelo intercâmbio cultural, se fortaleça cada dia mais, trazendo benefícios aos dois povos e ao mundo.

 

Este texto foi publicado originalmente na revista China Hoje. Clique aqui, inscreva-se na nossa comunidade, receba gratuitamente uma assinatura digital e tenha acesso ao conteúdo completo.

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