Narrating 2.0: o boom dos portais de áudio na China

A febre do streaming de áudio na web cria um mercado que pode atingir os US$ 48 bilhões

A voz áspera do idoso da tribo mistura-se ao crepitar da fogueira e ao farfalhar das folhas secas no ar da noite, enquanto ele narra histórias de animais selvagens e corajosos guerreiros. Em outro lugar, ouve-se o som das páginas sendo viradas por uma mãe lendo contos de fadas, enquanto as crianças, com o rosto enfiado nas cobertas até o nariz, ouvem com atenção, enfeitiçadas e de olhos arregalados, as histórias da hora de dormir que irão embalar seu sono. Esses ou outros cenários igualmente idealizados e arcaicos vêm à mente quando falamos em contar histórias.

Mas será que em 2018, na era da onipresença das telas de todos os formatos e tamanhos de smartphone, HDTVs, jogos para PCs e consoles, filmes IMAX em 3D, óculos de realidade virtual e realidade expandida, a narração de histórias exerce ainda a mesma atração? Ou ela logo terá o mesmo destino das extintas tradições do passado, como os flip books ou folioscópios, ou os teatrinhos de marionetes?

O homem, animal narrativo

A capacidade de contar histórias, como muitos cientistas concordam, provavelmente deu à nossa espécie vantagens evolucionárias decisivas. Permitiu que nós humanos pudéssemos transmitir experiências valiosas por meio da tradição oral, de uma geração à seguinte muito antes da invenção escrita, do papel ou de outro meio para armazenar informações.

Histórias de ficção, contadas segundo padrões familiares, bem estabelecidos, permitiram que nossos ancestrais vivenciassem na imaginação confrontos físicos e emocionais, produzissem e partilhassem experiências, e aprendessem com elas sem precisar correr reais perigos.

Nesse sentido, segundo se acredita hoje, as histórias de tradição oral funcionam como uma espécie de treino virtual. Foram capazes de nos levar a outros mundos, permitiram um confronto com situações e problemas desconhecidos. Por meio delas, acompanhamos seus protagonistas lidando com suas aventuras e dificuldades e extraímos disso lições como indivíduos ou grupos.

Mesmo hoje, essas histórias certamente ainda preenchem essa função. O que mudou, sem dúvida, foram os modos e os meios de sua transmissão. Em vez de nosso cinema mental, hoje em dia a internet e ricas experiências de multimídia provocam em nós jorros de endorfina e arrepios.

Mas será que a narrativa oral, a forma mais original da narração de histórias, é nessa era digital apenas uma relíquia de evolução que irá logo desaparecer completamente de cena? Um dia, talvez – mas com certeza não ainda, e isso é visto hoje na China de maneira impressionante!

Himalaya abre caminho

“Só é possível enxergar bem com o coração. A essência é invisível aos olhos…” A suave voz masculina, acompanhada por discretos arpejos de violão, chega aos meus ouvidos e à minha consciência por meio dos fones de ouvido do meu celular.

É o aplicativo de celular desse portal chinês de compartilhamento de áudio, Ximalaya FM (Himalaya para os ocidentais) que envia essas famosas palavras do livro O Pequeno Príncipe aos meus fones de ouvido. Enquanto me sento no sofá de meu apartamento em Pequim para ouvir esse audiolivro, mais de dois milhões de pares de ouvido antes de mim já fizeram isso, como releva o mostrador digital.

Em 2014, um usuário do aplicativo gravou a tradução para o chinês do clássico de Antoine de Saint-Exupéry e colocou-o on-line em 27 episódios curtos. O fato de dois milhões de pessoas terem ouvido um audiolivro não soa para mim como o final da narrativa oral.

Os criadores por trás do primeiro serviço chinês de áudio β, o Ximalaya, lançaram a primeira versão do seu aplicativo de mesmo nome em março de 2013. Desde então, os usuários podem subir suas próprias contribuições na plataforma e compartilhá-las com os demais visitantes.

Hoje, a Ximalaya tem cerca de 40 milhões de usuários ativos por mês, seis milhões dos quais usam o serviço ativamente todos os dias. Na média, cada um deles gasta 125 minutos na plataforma. Segundo o provedor, maios ou menos 10 mil novas contribuições de áudio são “subidas” diariamente. Em mais ou menos cinco anos, o suprimento inchou para mais de 60 milhões de arquivos de áudio. Isso faz da Ximalaya a plataforma de podcast mais bem-sucedida da China, embora esteja longe de ser a única. Concorrentes como a Qingting FM (Dragonfly FM), LRTS (audiolivro para preguiçosos), Lizhi FM (Lychee FM) ou a QQ FM (que leva esse nome devido ao popular serviço de mensagens) agora também contam com milhões de usuários. Por que a China está experimentando esse revival em narração oral no século XXI?

“Especialmente para os usuários de celular, o áudio streaming é simplesmente uma fonte prática de informação e entretenimento, particularmente quando os seus olhos estão ocupados com alguma outra coisa”, explicou o cofundador da Ximalaya, Chen Xiaoyu, em 2015, no TechCrunch de Xangai, um evento do portal líder mundial de notícias on-line de mesmo nome, voltado para companhias de tecnologia e internet. O Xangai TechCrunch de 2015 concentrou-se no tópico da Internet das Coisas (Internet of Things, ou IoT na sigla em inglês).

Segundo Chen, o áudio streaming não é apenas uma nova opção de entretenimento para situações do dia a dia – durante a ida e volta do trabalho ou enquanto se faz a lição de casa – em que seus olhos precisam estar focados em outras coisas, mas também quando seus olhos se cansam do brilho das telas ou quando queremos nos afastar por um tempo da sobrecarga visual da vida diária para mergulhar no mundo de percepção mais manejável da palavra narrada, disse Chen.

Os fundadores da Ximalaya identificaram precocemente essa crescente necessidade dos moradores das modernas cidades e foram capazes não só de expandir continuamente a sua base de usuários graças a uma ampla gama de peças para rádio, mas também de estabelecer numerosas cooperações em áreas de entretenimento, dentro de veículos ou dentro de casa.

Hoje, a Ximalaya trabalha junto com grandes fabricantes de automóveis como a Ford, BMW e Cadillac no desenvolvimento de sistemas de entretenimento para automóveis para o mercado chinês. E há ainda acordos de cooperação com fabricantes de aparelhos domésticos inteligentes, entre eles renomadas companhias como Haier, Midea, Skyworth e Hisense.

A IoT inaugura o futuro

Especialisas preveem um futuro cor-de-rosa para a IoT em particular, do qual o mercado de áudio streaming deverá também se beneficiar consideravelmente. Um número cada vez maior de nossos dispositivos do dia a dia logo começará a ser conectado diretamente à internet.

Essas são as previsões que deixam extremamente otimistas os provedores de serviços de compartilhamento de áudio. “Temos recebido sugestões de cooperação até de fabricantes de lâmpadas e de geladeiras, que querem manter aberta a opção de integrar nosso conteúdo aos seus futuros produtos”, disse o cofundador Chen em Xangai, em 2015.

Yu Jianjun, CEO e cofundador da Ximalaya, acredita que o volume de marcado para audiolivros e aúdio streaming na China irá crescer para 300 bilhões de yuans (US$ 47,7 bilhões), como relatou a China Daily em meados de 2017. Esse empreendedor da área de tecnologia estimou que cadeias industriais inteiras, incluindo escritores, editores, locutores profissionais e desenvolvedores de aplicativos, poderão se beneficiar desse boom.

De acordo com estudos da empresa Analysys de Pequim, especializada em consultoria de internet, o mercado de audiolivro experimentou um crescimento impressionante nos últimos anos.

Em 2016, o volume de mercado do setor alcançou a expressiva cifra de 2,2 bilhões de yuans. Segundo as previsões, essa cifra irá aumentar para cerca de 4,2 bilhões de yuans ao final de 2018.

Mas não são apenas os audiolivros que propiciam serviços de compartilhamento de áudio na China com esse grande influxo de usuários. Além dos títulos nacionais e estrangeiros de audiolivros, os portais também oferecem numerosos formatos de áudio em outros estilos, incluindo uma ampla variedade de programas musicais, e novos formatos de talk shows e peças de áudio, assim como opções de podcasts para todos os gostos.

Embora os podcasts fossem de início gravados por amadores e por entusiastas de leitura nas salas de suas casas, os formatos agora se tornaram perceptivelmente mais profissionais.

Conforme a onda ganha impulso, um número cada vez maior de celebridades da indústria do entretenimento, assim como de celebridades da internet, tem também aderido a ela. Em vez de simplesmente recorrer à leitura de obras existentes, as plataformas chinesas de podcasts compartilhados oferecem hoje uma abundância de conteúdo e formatos criados especialmente, com atualizações regulares, que são enviados diretamente aos celulares da comunidade de fãs por meio de canais de programas de assinatura.

Modelo bem-sucedido

Além dos audiolivros, as seções mais populares dão informações de negócios, comédia e entretenimento, conteúdos de amor e autoajuda, programas sobre história e cultura, além de formatos para crianças.

Entre as séries de podcasts atualmente mais ouvidas no Ximalaya estão alguns programas de sucesso com conteúdo de música e talk shows, produzidos pelo próprio serviço de streaming, como Good Voice (Boa Voz) e Good Night City (Boa Noite Cidade), mas acima de tudo os canais de celebridades. Um desses formatos mais populares é o Logic Show, do especialista chinês de mídia e empreendedor de TI Luo Zhenyu, no qual ele fala sobre negócios, sociedade e história.

O talk show humorístico Guo Degang’s Xiangsheng, no qual o famoso artista performático Guo Degang apresenta o tradicional bate-papo chinês (o chamado Xiangsheng) com convidados variados, é também muito popular.

O conhecido músico, produtor musical e diretor chinês Gao Xiaosong oferece à sua audiência episódios históricos, culturais e sociais do mundo todo em seu talk show Morning Call.

Em poucos anos, a Ximalaya passou de plataforma geral de entusiastas em podcast, na qual de início a maioria era de participantes amadores que subiam conteúdo, a uma das companhias chinesas de internet de maior sucesso, que desde então atraiu investimentos de milhões de yuans.

Estratégia de direitos autorais

A Ximalaya é também hoje a número um indiscutível do setor em termos de copyright. Em julho de 2017, a companhia declarou que era proprietária de cerca de 70% dos direitos de áudio dos títulos mais populares das livrarias chinesas. O portal também assinou acordos estratégicos de cooperação com grandes casas editoras, como a CITIC Press e a China South Publishing & Media Group, para publicar versões de áudio de seus best-sellers.

Além disso, a Ximalaya também coopera com a China Reading, a maior plataforma chinesa de literatura online. Assim a companhia assentou as bases legais para o sucesso futuro no negócio.

Em vista do rápido crescimento dos provedores de podcasts, a época em que jovens companhias de TI como a Ximalaya disputavam patrocinadores e parceiros de cooperação já é coisa do passado. Os anunciantes há tempos vêm reconhecendo o potencial dos serviços de áudio streaming da China e tomam a iniciativa de procurar os provedores.

Mais de 10 mil marcas estão hoje cooperando com a Ximalaya. Além da propaganda tradicional muitas companhias hoje entram em cooperação direta com os apresentadores de canais de sucesso, ou então abrem os próprios canais para apresentar habilidosamente seus produtos.

Quando interrompo minha sessão do Pequeno Príncipe, vejo saltar na tela do meu celular um anúncio da Volkswagen. Alguns anunciantes chegam ao extremo de deixar que aqueles que hospedam áudio usem conteúdo genuíno para promover seus produtos.

Por exemplo, a fabricante chinesa de guarda-chuvas Jiaoxia tinha um episódio sobre a proteção contra o sol criado pelo bem-sucedido blogger de áudio Caicai e distribuído pelo próprio canal da empresa na Ximalaya, com grande sucesso: graças a essa promoção de áudio muito bem produzida, foram vendidos 20 mil guarda-chuvas em apenas 24 horas.

Conhecimento à venda

Outra direção de desenvolvimento estratégico na qual os criadores da Ximalaya estão apostando para o futuro é o conteúdo pago. Hoje, alguns canais e programas já são acessados por meio de uma assinatura, com pagamento de uma pequena taxa. Nos últimos dois anos, o portal comprovou que isso pode dar certo em seu 123 Knowledge Day (Dia do Conhecimento 123).

Inspirados em eventos de vendas similares, como a popular Black Friday nos Estados Unidos ou a promoção anual da Alibaba Shopping Carnival (Carnaval de Compras), realizada em 11 de novembro, a Ximalaya promoveu seu 123 Knowledge Day pela primeira vez em 3 de dezembro de 2016.

O evento de conteúdo de áudio pago trouxe à Ximalaya um aumento de vendas de 50 milhões de yuans (6,4 milhões de euros) na estreia, em apenas 24 horas. Desse modo, a Ximalaya igualou a renda da Alibaba em seu primeiro Shopping Carnival de 2009.

Em 2017, o 123 Knowledge Day alcançou uma cifra de 196 milhões de yuans, quatro vezes a do ano anterior. Metade da renda foi para a Ximalaya, e a outra metade foi distribuída entre os criadores dos podcasts.

Todas essas cifras destacam o grande potencial econômico do setor. E o cofundador da Ximalaya, Yu Jianjun, tem grandes ambições para o futuro:

“Nossa meta é construir uma plataforma no modelo do Tmall da Alibaba, onde os provedores criam conteúdo de alta qualidade para os nossos usuários”, afirmou Yu em 2017. Yu, ao que parece, objetiva tornar-se um Taobao do mundo da mídia.

E o público chinês parece estar prontamente disponível a pôr a mão no bolso para comprar conhecimento. Acima de tudo, programas de áudio sobre tópicos como carreira e empregos, finanças e coaching pessoal têm vários milhões de seguidores. Entre os termos de busca de podcasts mais populares em 2017 estavam “vida melhor”, “prosperidade” e “sucesso pessoal”.

Examinando mais de perto, a jornada das origens evolucionárias da narração de histórias fecha agora o círculo, já que mesmo no século XXI nós aparentemente temos a necessidade de aprender por meio da palavra falada e da experiência virtual de outras pessoas, a fim de nos prepararmos para futuras dificuldades e potenciais riscos, ganhando assim uma vantagem evolucionária.

Só que hoje não são mais os animais selvagens e os predadores que estão à espreita como perigos reais entre os arbustos da selva, já que foram suplantados pelo medo de ficar para trás em termos financeiros e de perspectivas de crescimento na carreira, dentro de nossas selvas de concreto.

Na era do infotainment, isto é, do entretenimento digital, os heróis dos tempos modernos são aqueles que obtiveram experiências úteis e sucesso em seus domínios e que compartilham a sabedoria obtida nessas experiências com as demais pessoas. Eles inspiram a imaginação da audiência em sua busca de um autoaprimoramento e de uma vida mais feliz e, ao mesmo tempo, ajudam a alimentar o crescimento da economia on-line e off-line.

Tudo isso assegura que a palavra falada irá continuar muito viva na China e em toda parte em 2018, e que, em vez de perder força, irá florescer ainda mais na era da informação digital.

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