Temos visto o mundo afastar-se da unipolaridade, adotar a bipolaridade e agora a multipolaridade. Os EUA não estão em declínio; no entanto, sua influência diminui conforme outros países como China e Índia emergem. A multipolaridade se reflete não apenas nas economias emergentes, mas também nas organizações formadas pelos Estados e por atores não estatais.
Essa multipolaridade heterogênea exige mudanças estruturais.
Vários estudiosos sugerem mudanças estruturais. Samuel Huntington cunhou a noção de estrutura unimultipolar, que teria os EUA em seu núcleo e vários países dando apoio diplomático, econômico e militar às suas iniciativas. Esse arranjo estrutural é insustentável a longo prazo, e as crises na Líbia e na Síria mostram isso bem.
Com Donald Trump na Casa Branca, as fissuras entre os EUA e seus aliados ficaram óbvias, e o pensamento nos moldes de Trump, voltado para o interior, mostra que os EUA, assim como seus aliados, irão continuar não comprometidos com a moldagem do futuro da ordem global. Richard Haass tem defendido como resposta a “não polaridade”, segundo a qual uma dúzia de países poderia ser capaz de “exercer diferentes poderes”. Por sua vez, Giovanni Grevi argumenta que o mundo está se tornando cada vez mais “interpolar”, constituindo uma “multipolaridade na era da interdependência”.
Ele coloca o Estado no centro, mas concorda que os atores estatais não têm como infligir um severo golpe ao sistema. Seja qual for o acrônimo, tudo aponta para um multilateralismo na era da interdependência global. O multilateralismo ou multimultilateralismo não é necessariamente uma solução definitiva para o problema bilateral ou multilateral, mas é muito importante para a resolução de conflitos e para aprimorar o entendimento e a cooperação entre as nações. O Brics é um bom exemplo disso. O grupo responde por 22% da economia mundial, 19% do comércio global, e contribui com mais de 50% para o crescimento econômico do mundo; analisando o PIB da China, vemos que é maior que o PIB dos outros quatro países, e que sua contribuição para a economia mundial é superior a 33%.
Listamos a seguir os prováveis temas da Cúpula.
1. Globalização versus desglobalização
O retorno a um entrincheiramento no Ocidente, liderado pelos EUA; as fissuras na aliança ocidental; as dúvidas a respeito do futuro da União Europeia após o Brexit, a recessão econômica na maioria dos países que a compõem, a crise dos refugiados etc., são problemas do Ocidente que têm feito com que esses países se tornem cada vez mais protecionistas, a ponto de os EUA terem pulado fora do Acordo de Paris sobre a mudança climática. Ao contrário, o Brics e muitos países em desenvolvimento têm mantido seu compromisso com a globalização e a conectividade na região e além dela. O Brics continua comprometido com o Acordo de Paris, e com o multilateralismo.
Nesse cenário, o Brics se depara com novas oportunidades, mas também com responsabilidades ainda maiores. Na 9ª Cúpula do Brics em Xiamen, é provável que os países-membros elevem o tom em defesa da globalização, e se contraponham à desglobalização ou às tendências protecionistas no Ocidente. Como a iniciativa Cinturão e Rota, proposta pela China, continua sendo uma proposta gigantesca de conectividade para este século, voltada para estimular o crescimento regional e global, seu endosso pelo Brics pode ser problemático, já que há diferentes percepções a respeito de alguns corredores da Iniciativa Cinturão e Rota entre os países do Brics. No entanto, os países do Brics podem não se opor a cooperar em certos projetos que cheguem a identificar após mútuas consultas.
2. Cooperação Sul-Sul
É evidente que os países em desenvolvimento gostariam de se libertar de seu papel subserviente das economias industrializadas, e forjar relações econômicas e políticas mais fortes entre eles, baseadas em respeito mútuo, igualdade e cooperação do tipo ganha-ganha. O Brics e suas instituições afiliadas, como o Novo Banco de Desenvolvimento e o Arranjo Contingente de Reservas, devem ser vistos a partir dessa perspectiva. A iniciativa de conectividade da China parece oferecer esse modelo de cooperação, visto como menos explorador e mais relevante para o mútuo desenvolvimento. No entanto, é fato que os países do Brics, especialmente a China, têm sido providenciais para os fluxos de financiamento Sul-Sul; hoje os bancos políticos da China emprestam mais capital do que qualquer outro banco no mundo. A cooperação tem resultado em investimento exterior direto, comércio e transferência de tecnologia, especialmente em setores como mineração, energia e infraestrutura. Portanto, a Cooperação Sul-Sul será um dos principais temas da cúpula. Atrair investimentos do Brics e “recorrer” ao Brics serão os focos principais da China. O Novo Banco de Desenvolvimento espera realizar empréstimos no valor de US$ 2,5 bilhões este ano dentro dessa cooperação.
No entanto, apesar de o Brasil ser um imenso mercado de commodities, a África e a Rússia serem ricas em recursos naturais, a Índia ser a maior economia agrícola, e a China o maior exportador de commodities e de capacidade produtiva, o intracomércio entre os países do Brics continua sendo abismal. Em 2015, por exemplo, ficou em cerca de US$ 250 bilhões. No entanto, embora o primeiro-ministro indiano Modi fale em dobrar esse valor para US$ 500 bilhões até 2020, se as estratégias de desenvolvimento forem incoerentes, isso ainda ficará muito distante.
Os países-membros devem entender que, a não ser que alinhem suas respectivas estratégias nacionais de desenvolvimento – ou até que o façam –, não poderão pensar em tornar seus motores domésticos de desenvolvimento mais fortes. Assim, o alinhamento mútuo de seus projetos de conectividade, sejam domésticos ou externos, irá resultar em um nível maior de envolvimento no intra-Brics ou além dele, favorecendo com isso um crescimento geral do comércio e do investimento, das finanças, turismo, e também dos contatos pessoa-pessoa. A longo prazo, poderemos pensar em uma melhor conectividade regional, em uma conectividade intrarregional que prepare o caminho para uma integração econômica regional ou transregional.
3. Governança global
A mudança de paradigma na economia e na estrutura política global resultou em um ajuste estrutural no sistema de governança global. O G20 demonstrou que os países desenvolvidos e em desenvolvimento podem sentar juntos à mesa; ao mesmo tempo, vários novos mecanismos, como Brics, SCO, NDB, Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), Fundo da Rota da Seda etc., indicam que as economias emergentes são capazes de remodelar ou que se dispõem a complementar os mecanismos de governança existentes com novos mecanismos. Como membros fundadores de vários desses mecanismos, a Índia e a China estão tendo um papel importante na construção de pontes entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, e acrescentando maiores riquezas à economia global.
Alguns dizem que o estabelecimento de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura têm desafiado a ordem pós-Segunda Guerra Mundial. O fato é que a criação dessas instituições é resultado do sistema de Bretton Woods, que vive em terreno instável após as crises financeiras de 2008-09 e a crise do euro, lembrando que, se instituições como o FMI, o Banco Mundial e o Banco de Desenvolvimento Asiático seguirem criando vínculos de dependência em seus auxílios ao desenvolvimento e empréstimos, haverá uma consistente demanda por instituições alternativas. Especialmente num quadro de fraca recuperação econômica global, a criação de instituições desse tipo promoverá nessas regiões um desenvolvimento de infraestruturas, e também social e econômico. Mesmo que o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura não seja um desafio às instituições financeiras existentes, ele será visto como complementar à ordem existente.
4. Contraterrorismo
Os países do Brics continuam comprometidos com o combate ao terrorismo em qualquer de suas formas, e acreditam ser necessário expandir a cooperação prática em inteligência compartilhada, construção de capacidades e no provimento de segurança aos seus crescentes interesses no exterior. Nesse contexto, foi criado um Grupo de Trabalho em Contraterrorismo durante a 8ª Cúpula em Goa, onde foi realizada sua primeira reunião. O grupo concordou em expandir a cooperação em contraterrorismo de modo a incluir medidas para negar o acesso de terroristas às finanças e a hardware ligado ao terror – como equipamento, armas e munições. A segunda reunião teve lugar em Pequim, em 17 de maio de 2017, e abrigou extensas discussões sobre os problemas que afetam a região e outros países. A Índia tem insistido que as nações do Brics apoiem seus esforços para a adoção de uma convenção abrangente sobre terrorismo nas Nações Unidas e que elimine a ambiguidade entre “bons” e “maus” terroristas.
5. Intercâmbios pessoa-pessoa
Os intercâmbios pessoa-pessoa são o pilar de todos os intercâmbios bilaterais e multilaterais. O capital cultural de um país é o fator que exerce atração e lança as bases de um entendimento entre as pessoas. Quanto aos intercâmbios pessoa-pessoa entre nações do Brics, acredito que, apesar dos vários intercâmbios atuais, como festivais de cultura, de mídia, cinema, bolsas do Brics etc., ainda há um imenso espaço para fortalecer e ampliar o escopo desses intercâmbios. O estabelecimento da Liga de Universidades do Brics é um excelente exemplo. É preciso institucionalizar esses mecanismos e criar outros, em vários níveis.
6. O que a Índia e a China podem fazer?
Em primeiro lugar, a influência econômica e política que esses dois países irão exercer sobre os mecanismos de governança global articula-se a partir de seus propulsores domésticos. Portanto, a maior contribuição que ambos podem dar ao G20 ou a outros novos mecanismos é manter um crescimento interno robusto e a paz e estabilidade regionais. É por isso que as economias emergentes têm sido capazes de injetar bilhões de dólares nas instituições de governança global existentes e de exercer pressão para a realização de reformas e para obterem maior representação.
Em segundo lugar, será graças a esses fortes propulsores domésticos que as economias emergentes conseguirão apoiar ideias como a de um núcleo de infraestrutura global e a de um fundo global de infraestrutura, apresentadas pela Cúpula do G20 de Brisbane, em 2014, e pelo Banco Mundial. O presidente Xi Jinping tem apoiado essas ideias por meio da iniciativa Cinturão e Rota, do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, do Fundo da Rota da Seda e de outros mecanismos.
Em terceiro lugar, o crescimento doméstico poderia ser estimulado de várias maneiras, já que tanto a Índia quanto a China têm contribuído com projetos de conectividade ambiciosos, que poderiam ser implantados conjuntamente por meio de consultas e coordenação em nível provincial e nacional. Por exemplo, o projeto mais caro ao primeiro-ministro Modi, o Plano Nacional do Programa Sagarmala, que promete modernizar os portos da Índia e integrá-los a Zonas Econômicas Especiais, a cidades inteligentes baseadas em portos, a parques industriais, armazéns, parques de logística e corredores de transporte, poderia ser atrelado à iniciativa Cinturão e Rota da China.
No que se refere à conectividade regional, o “Bharatmala” da Índia, por meio do qual o país planeja conectar todo o cinturão himalaico de estados indianos em uma rede de ferrovias e estradas, poderia ser atrelado aos planos regionais do Noroeste e do Sudoeste da China.
No leste da Índia, o corredor econômico BCIM poderia revolucionar a conectividade por terra e facilitar não só o crescimento doméstico, mas também o regional, com a Asean. Similarmente, Índia e China poderiam negociar um corredor econômico maior, abrangendo o Noroeste da China e o Norte da Índia, que seria facilmente conectado por uma rede de estradas, ferrovias e dutos de petróleo e gás. Desnecessário dizer, a fim de materializar esses projetos, ambos os países precisam assumir uma visão holística e de longo prazo de suas relações, assim como a mudança global do Atlântico para o Pacífico. Se a Índia e a China não se entenderem bem, o Brics deixará de existir.
Em quarto lugar, a fim de promover a transformação da estrutura de governança global, a Índia e a China precisam se tornar parceiras em seus respectivos desenvolvimentos. Houve mudanças positivas na segurança bilateral, assim como nos ambientes de negócios; no entanto, dado o potencial de ambas, existe um imenso âmbito de possibilidades. A fim de incentivar esse potencial, ambas precisam iniciar planos e políticas inovadores de desenvolvimento, e reformas estruturais em áreas como impostos, investimento, finanças, trabalho etc. Além disso, suas políticas macroeconômicas devem estar sincronizadas com as políticas sociais, que irão assegurar estabilidade à sociedade e aceitação do planejamento do governo.
B. R. Deepak é especializado em história da China e relações Índia-China pela Academia Chinesa de Ciências Sociais da Universidade de Pequim, pela Universidade Jawaharial Nehru, de Nova Délhi, e pela Universidade de Edimburgo, no Reino Unido. Possui notável produção a respeito do tema.
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