Uma inovação institucional chinesa: Como Europa e China trataram suas minorias

Por Zhu Lun

Mais ou menos do tamanho da Europa, mas abrigando cerca de duas vezes mais pessoas, a China é diversificada não apenas em geografia, mas em idioma, cultura e etnia. Os assuntos étnicos domésticos na China contemporânea inscrevem-se no sistema de autonomia regional étnica do país. Esse sistema é administrado por cinco regiões autônomas, 30 prefeituras autônomas e 120 distritos ou bandeiras autônomas, que coletivamente compõem essas áreas étnicas dotadas de autonomia.

As origens do sistema de autonomia regional étnica da China remontam à longa história de intercâmbio entre suas etnias, que difere muito do que ocorreu, por exemplo, na Europa.

A experiência europeia – O conceito de autonomia nacional surgiu na Europa como resultado da interação entre a busca de independência nacional e o jugo do domínio imperial.

Desde o Império Romano, diferentes grupos linguísticos e culturais na Europa foram classificados recorrendo-se ao termo “povos”. No século 10º, surgiu em áreas de língua latina o termo “nações”, usado exclusivamente para distinguir povos nascidos em lugares diferentes. Após o século 15, o termo “nação” evoluiu gradualmente para um conceito com implicações políticas, associado a países independentes.

Nos estágios posteriores do Iluminismo, para evitar conflitos étnicos, surgiu a proposta de definir “estados-nações” com base na homogeneidade linguística e cultural historicamente formada dos “povos”. Nessa época, a doutrina de “um povo, uma nação, um estado” passou a ser considerada por alguns europeus como uma teoria fundamental do nacionalismo.

No entanto, essa teoria enfrentou desafios práticos. O estabelecimento de alguns países e impérios na Europa passou a ser conduzido por classes dominantes de grupos étnicos poderosos, enquanto grupos étnicos relativamente mais fracos viram-se em posições subordinadas. Para esses grupos étnicos, a única alternativa possível foi buscar a própria autonomia dentro de países governados por outros grupos étnicos.

No século 19, ideias e movimentos políticos nacionalistas se espalharam da Europa Ocidental para a Europa Central e Oriental. Essa mudança levou a várias guerras, com a Hungria, por exemplo, envolvendo-se em três guerras consecutivas de independência (em 1848, 1859 e 1866), impulsionadas pelo desejo de se libertar do domínio do Império Habsburgo austríaco.

O desafio então passou a ser como reconciliar a contradição entre o domínio imperial e a independência nacional. Com base na teoria nacionalista, que postula que uma nação se desenvolve a partir de seu povo e se manifesta como um país independente, os intelectuais europeus na década de 1860 começaram a usar “nacionalidades” para se referir a povos que não haviam estabelecido países independentes. O Império Austro-Húngaro foi o primeiro a adotar oficialmente esse conceito.

Em 1867, o Reino da Hungria e a monarquia austríaca dos Habsburgos assinaram o Ausgleich (compromisso), formando o Império Austro-Húngaro. O imperador austríaco também assumiu o título de rei da Hungria, mas nem a Áustria nem a Hungria estavam subordinadas à outra, e cada uma manteve o poder sobre seus respectivos povos. Esse arranjo se estendeu a cerca de uma dúzia de outros grupos étnicos, ou nacionalidades, dentro do império, marcando a origem da autonomia nacional na Europa.

Ao examinar a prática do Império Austro-Húngaro, é possível ver que a alocação de certo grau de poder político a grupos dominantes de várias  nacionalidades foi concedida em troca de sua aceitação da ordem imperial. Este é o pano de fundo político da autonomia nacional europeia.

No entanto, alguns grupos com poder de decisão ou forças dominantes de certas etnias estavam insatisfeitos com a designação e o status de “nacionalidade” e constantemente procuravam mobilizar seus próprios povos sob a bandeira de “nações” para estabelecer estados soberanos independentes, o que originou o separatismo étnico na Europa. Foram esses movimentos de independência nacional que levaram à dissolução do Império Austro-Húngaro, e de outros, após a Primeira Guerra Mundial.

Por volta da virada do século 19 para o século 20, as potências coloniais europeias também começaram a conceder graus dessa “autonomia” a fim de aliviar os conflitos com suas colônias. Países como Canadá, Austrália e Nova Zelândia experimentaram um período de “autonomia” antes de conquistar a independência.

É por causa de uma certa orientação contra o imperialismo e o colonialismo em um período histórico específico que a autonomia nacional foi dotada de um significado positivo na cultura política europeia.

A abordagem da China – O conceito de autonomia regional étnica da China contrasta fortemente com o modelo europeu de autonomia nacional.

A primeira distinção está nas definições da entidade que pratica a autonomia. O sistema de autonomia regional étnica da China integra fatores étnicos à geografia natural e econômica para estabelecer regiões autônomas (nível provincial), prefeituras autônomas e distritos/bandeiras autônomos com diferentes níveis administrativos. Cada uma dessas áreas abriga uma mistura diversificada de grupos étnicos. Mesmo em distritos autônomos relativamente pequenos, pode haver até 20 ou 30 grupos étnicos. Além disso, em todas as áreas étnicas autônomas, o grupo étnico han representa uma certa proporção da população e, em muitos lugares, constitui até a maioria. Portanto, as entidades ou órgãos de governo autônomos compreendem naturalmente pessoas de vários grupos étnicos, em vez de serem exclusivas de um único grupo.

Vale a pena notar que, na China, a maioria dessas áreas incorpora as denominações de um ou mais grupos étnicos minoritários em seus nomes, como a Região Autônoma da Etnia Zhuang de Guangxi (localidade) e a Prefeitura Autônoma das Etnias Dehong e Jingpo de Dehong (localidade), na Província de Yunnan. Mas isso não implica que essas áreas étnicas autônomas pertençam exclusivamente a um ou a alguns grupos étnicos minoritários específicos.

A segunda diferença está nas definições de “autonomia”. Na Europa, a autonomia nacional envolve uma divisão negociada do poder político entre dinastias imperiais e governantes de vários grupos étnicos, sob uma embalagem de “direitos políticos étnicos”. No entanto, na prática chinesa de autonomia regional étnica, “autonomia” não se refere ao poder de um determinado grupo étnico dominante ou aos direitos políticos de um grupo étnico específico. Em vez disso, refere-se às funções e poderes da autoridade pública em uma área étnica autônoma.

Em terceiro lugar, há uma diferença nos sistemas políticos que salvaguardam a gestão de áreas étnicas autônomas. Em países que praticam a democracia de estilo ocidental, o estabelecimento de um “partido étnico” é um fenômeno comum. Isso inevitavelmente leva a duas situações. Primeiro, os partidos étnicos que representam etnias com populações menores podem ter pouco impacto na tomada de decisões políticas nacionais e locais, como visto em alguns países latino-americanos com partidos ou alianças étnicas indígenas. Nesses casos, as demandas não atendidas de grupos étnicos minoritários podem levar à escalada de conflitos. Em segundo lugar, nas regiões desenvolvidas, os partidos étnicos que representam populações maiores, depois de ganharem autonomia regional por meio do processo eleitoral, muitas vezes exigem continuamente uma expansão da autonomia e do poder local. Isso também pode levar a uma escalada do conflito, por exemplo, com o lançamento de “referendos de independência” sob o  pretexto de “democracia étnica”, como observado em Quebec (no Canadá), na Escócia (no Reino Unido) e na Catalunha (na Espanha).

A China estabeleceu um sistema político nacional abrangente e pratica a democracia popular socialista. Este sistema inclui o sistema de assembleias populares e o sistema de cooperação multipartidária e consulta política sob a liderança do Partido Comunista da China. A administração das áreas étnicas autônomas da China opera dentro desse sistema político nacional. Por um lado, garante efetivamente a unidade nacional, com áreas étnicas autônomas implementando políticas nacionais. Por outro lado, pode responder prontamente aos interesses e demandas legítimos de vários grupos étnicos e, ao mesmo tempo, resistir à influência do nacionalismo extremo e do separatismo étnico.

Em quarto lugar está o novo conceito relativo aos direitos políticos das minorias étnicas. Aqueles que defendem a autonomia nacional invariavelmente consideram os direitos políticos étnicos como uma das razões que justificam essa autonomia. Alguns chegam ao ponto de considerar a autonomia baseada em unidades políticas étnicas como uma consubstanciação de igualdade étnica.

No entanto, quando se trata dos direitos políticos das minorias étnicas, as pessoas precisam romper as restrições conceituais do discurso sobre “autonomia nacional”. O sistema de autonomia regional étnica da China e sua prática representam inegavelmente uma mudança de paradigma.

Em contraste com o discurso de “autonomia nacional” que envolve delineamento territorial, o sistema de autonomia regional étnica da China permite que pessoas de todos os grupos étnicos administrem conjuntamente os assuntos nacionais e locais levando em conta seus próprios interesses e o bem-estar comum. A gestão conjunta dos assuntos nacionais e locais por todos os grupos étnicos é um novo conceito para governar sociedades multiétnicas e uma nova perspectiva a respeito dos direitos políticos étnicos, que supera as limitações que surgem ao definir os direitos políticos das minorias étnicas como autonomia nacional.


*Zhu Lun é pesquisador do Instituto de Etnologia e Antropologia da Academia Chinesa de Ciências Sociais e professor emérito da Universidade Normal de Jiangsu. Este é um trecho editado de um artigo publicado pela primeira vez pela Deep China, uma iniciativa acadêmica que produz análises sobre um amplo espectro de tópicos relacionados à China.

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