Para um debate democrático sobre a democracia socialista chinesa

Por Evandro Menezes de Carvalho*

Há poucos dias, o Gabinete de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China publicou o Livro Branco intitulado “China: Democracia que funciona”. O momento em que este documento é publicado não poderia ser mais oportuno: às vésperas da chamada Cúpula para as Democracias convocada pelo presidente estadunidense Joe Biden sob o argumento de impedir retrocessos democráticos em vários países. A China não foi convidada para esta Cúpula. Curiosamente, foi o único país que apresentou um documento sobre o tema até o momento.

Por não ter sido convidada, é legítimo que a China considere essa Cúpula como uma ação dos EUA visando a criar dificuldades para a política externa chinesa. Afinal, no governo de Donald Trump, os EUA tentaram levar adiante uma “dissociação” econômica no seu comércio bilateral com a China ao mesmo tempo que, surpreendentemente, praticavam uma política externa isolacionista na relação deles com o mundo. Biden corre contra o tempo para reverter as consequências negativas da política isolacionista do Trump e acredita que isto passa por uma campanha promovendo uma “dissociação” do mundo com a China. A razão de fundo desta ação dos EUA nada tem a ver com as divergências americanas em relação ao sistema político chinês, mas com o fato de a China ser o maior parceiro comercial de, aproximadamente, 130 países, superando os EUA, e responder por 13% do comércio global, tendo ultrapassado os EUA em 2013.

Obviamente, os EUA têm o direito de convidar quem eles quiserem para a tal Cúpula. E a China, por sua vez, tem o direito de se inserir nesse debate público e defender a sua democracia socialista inscrita na sua Constituição. Mas há duas contradições naquela Cúpula para as Democracias que saltam aos olhos: a primeira é que a decisão sobre quem é ou não uma democracia não só é pouco democrática como não tem critérios claros. E se houvesse tais critérios, seriam eles suficientes para caracterizar um país como uma “democracia”? Este é um bom tema para uma discussão democrática. A segunda contradição é que os EUA, diferentemente da China, se negam a discutir formas de “democratização do sistema internacional”. Não basta se dizer ser um país democrata se não se pratica a democracia no plano internacional.

É fato que muitas democracias estão sofrendo um processo de erosão de sua legitimidade, sobretudo diante da incapacidade de promover desenvolvimento econômico com justiça social. A alta concentração de renda e o aumento da pobreza reforçam o estado de crise dessas democracias. Justamente porque muitas das democracias estão em crise é que esse debate torna-se necessário e precisa ser ampliado. Com o Livro Branco, a China não só apresenta o seu ponto de vista sobre os critérios para um país se dizer democrático, como também demonstra abertura para debater o tema com outros países que se dizem democráticos.

Partindo da premissa exposta no Livro Branco de que “não há um modelo fixo de democracia” e que “a democracia não é um ornamento decorativo”, a democracia socialista chinesa define-se como uma combinação de democracia eleitoral com uma democracia consultiva, com ênfase nos resultados. Neste sentido, o exercício do poder é orientado para resolver problemas que o povo quer que sejam resolvidos, fazendo uso de várias formas e canais de consulta com o objetivo de saber “o que o povo quer” e “o que o governo faz”. A democracia socialista chinesa tem uma preocupação em tornar visível e tangível as realizações das políticas adotadas pelo Partido e pelo governo como condição para a legitimidade do seu sistema político. Nos últimos quarenta anos os chineses experimentaram uma melhoria nas condições de vida sem precedentes em toda a história da China. E no ano em que o Partido Comunista da China celebrou o seu centenário de fundação, a nação comemorou a erradicação da extrema pobreza em seu território. Que democracia do mundo está em condições de dizer qual a reforma política que deve promover a China?

Mas o governo de Xi Jinping quer ir além dos indicadores econômicos e do bem-estar social da população como fatores de legitimação do sistema político chinês para incluir, também, maiores formas de participação popular. Nos termos do Livro Branco, a democracia não pode se resumir apenas ao exercício do direito de voto pela população, mas deve abranger, também, o direito de participação extensiva da população. Além disso, a democracia deve ser avaliada pela quantidade das promessas eleitorais efetivamente cumpridas pelo governo e pela efetiva observância das regras que regulam o processo político, submetendo-as ao escrutínio público com frequência.

Nos anos da Guerra Fria, acreditava-se que democracia e capitalismo eram irmãos siameses. Hoje está cada vez mais evidente que o modelo econômico capitalista de exploração do trabalhador é uma das principais causas de erosão da democracia. As democracias ocidentais não querem enfrentar o problema de frente. Domar o capitalismo desenfreado é o que tentam fazer alguns políticos bem intencionados nas democracias ocidentais, até agora sem sucesso. Se continuar assim, regimes democráticos terão que pensar novos caminhos. E a China parece trilhar um caminho que, entre erros e acertos, pode ser uma referência importante para o debate.

Este texto foi publicado originalmente na revista China Hoje. Clique aqui, inscreva-se na nossa comunidade, receba gratuitamente uma assinatura digital e tenha acesso ao conteúdo completo.

*Editor-Chefe da China Hoje. Professor da UFF e FGV. Pesquisador Sênior do Institute for Global Cooperation and Understanding (iGCU), da Universidade de Pequim.

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