Quando morava em Wuhan, China central, lá pelos idos de 2015, estava entrando no vagão de metrô numa tarde atribulada quando me deparei com peculiar anúncio nas portas do trem. Ele mostrava uma foto de uma mulher chorando, e os dizeres: “Mamãe, sempre te amarei”. E então a frase “Se eu tivesse chegado em casa uma hora antes, mamãe não teria me deixado”. Enfim, era um anúncio de um desfibrilador, e passado o estranhamento inicial, comecei a me perguntar sobre os sentimentos ali evocados, e se alguma empresa brasileira teria feito o mesmo para vender o produto por aqui. Há anúncios de desfibriladores no Brasil, mas são bem diferentes. Ao ter dificuldade de imaginar o mesmo anúncio sendo veiculado no Brasil, comecei a me perguntar por quê. E foi justamente na particular relação da China com os seus velhos que encontrei a explicação. A China tem uma íntima relação com o envelhecimento, e esta relação tem duas dimensões: uma é a sua contemporânea transição demográfica, e outra é a ancestral questão cultural.
A China passa por uma transição demográfica, decorrente de melhorias nas condições de vida, menos filhos por mulher e aumento da esperança de vida. Logo, o envelhecimento de sua população. Assim, há que se pensar num modelo previdenciário mais consolidado, e lidar com mais doenças crônico-degenerativas não-transmissíveis. Uma economia menos dinâmica, com menos inovação e riscos é esperada. O que está a se formar é um verdadeiro tsunami grisalho, prestes a atingir a China em 30 anos. A Razão de Dependência para Aposentados (ONU) consiste no número de pessoas com 65 ou mais divididas pelo total da população economicamente ativa. Se em 2015 a Razão era de 14%, prevê-se que em 2050 será de 44%. Assim, a China é o país que envelhece mais rápido no mundo. Se o mundo ocidental levou 100 anos para atingir os níveis de envelhecimento atuais, espera-se que a China os atinja em apenas 30. Num total de 1,34 bilhão de pessoas, hoje a China tem 110 milhões acima de 65 anos. Para 2060 preveem-se 357 milhões. Por outro lado, a aposentadoria na China é de 60 anos para homens e 50 para mulheres. Dados de 2015 apontam para uma expectativa de vida de 74,6 e 77,6 anos respectivamente. No campo se encontram as maiores proporções de idosos, dando uma amostra do que aguarda a China. Cenários de quatro idosos para um casal jovem cuidar já são visíveis. É cada vez mais comum ver as famílias 4-2-1. Elas têm 4 avós, os 2 pais e um filho único. Mas por que ali? São áreas repletas de idosos e crianças, e a população economicamente ativa foi embora em busca de oportunidades. Estes idosos sofrem pela falta de comunicação com os adultos ausentes. Rudong, na província de Jiangsu, contém a bomba-relógio do envelhecimento: a “grey wall of China”, com uma transição demográfica já completa. É a cidade mais geriátrica da China, com 30% dos habitantes com mais de 60 anos. É considerada o lugar do futuro, onde lares de idosos substituem escolas. Mas por que lá? Porque lá foi a experiência-piloto para a política do filho único, implementada já nos anos 1960, vinte anos antes do resto do país. Solidão, crise econômica e não poder se aposentar são os desafios. Mas como seus habitantes os atenuam? A cidade tem Universidade da Terceira Idade, com atividades culturais ou mesmo curso de como usar smartphones, por 80 yuans (R$ 40) por semestre.
Os idosos são centrais na cultura chinesa. Tomam as ruas de manhã praticando taijiquan, e à noite fazendo dança de salão. Nas famílias 4-2-1 são os responsáveis pela educação das crianças. Têm preferência em vários assuntos, o que se deve às teorias de Confúcio (551a.C – 479 a.C). Imerso num contexto de guerras, o filósofo cria uma teoria voltada à estabilidade social. E em tal lógica, a relação Pai–Filho se destaca, preconizando obediência (ao pai) e benevolência (ao filho). A Piedade Filial (Xiao) se firma ali como virtude.
A virtude Xiao está presente na constante pressão por cuidar dos pais: também está no anúncio de desfibrilador – e até na conhecida história da guerreira Mulan, que entra na guerra para poupar o pai. Ser bom filho é obedecer os pais e dar-lhes face (mianzi). Ter um filho, sobretudo homem, é esperado para garantir o sustento na velhice.
Enquanto pessoas com mais de 35 anos são valorizadas no trabalho, os mais velhos dirigentes do país têm os cabelos muito bem pintados de preto. A justificativa: pessoas com cabelos grisalhos são para serem cuidadas, não para cuidar. Mais uma contradição desta terra de dualidades. De um lado, uma cultura confucionista que põe o idoso no topo da hierarquia. De outro, desafios. A nova incógnita é como tais relações estão se transformando com a covid-19. O futuro dirá, mas a pandemia já trouxe uma luz em termos de acesso a serviços de saúde, pois o governo se responsabilizou pelos tratamentos. E aqui sigo tentando entender Xiao e como a China se prepara para o tsunami grisalho.
Daniel Bicudo Veras é pesquisador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Direito Rio. Doutor em ciências sociais pela PUC-SP, morou dez anos na China, onde foi professor de estudos brasileiros na Universidade de Hubei e estudante de chinês da Universidade de Nanjing. Email: daniel.veras@fgv.br
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