Por Jussara Goyano
As relações entre brasileiros e chineses são carregadas de convergências – são fluidas, amistosas e baseadas em confiança e acolhimento que podem transpor distâncias e a maior das barreiras: o idioma.
O guanxi (que em português quer dizer, simplesmente, contato) é, talvez, o princípio mais poderoso a reger as relações sino-brasileiras. O conceito pressupõe uma confiança adquirida entre indivíduos, em âmbito pessoal, para depois evoluir rumo a negócios, interações políticas, acadêmicas ou de trabalho. De uma certa forma, pode-se dizer que a amizade vem primeiro para os chineses, seja em seus limites pátrios seja nas trocas internacionais. E a percepção é de que, quando se trata de humanidade e de relações interpessoais, este é apenas um, entre inúmeros pontos de convergência com os brasileiros capazes de transpor os mais diversos obstáculos culturais.
A vivência de intercâmbio narrada por José Ricardo dos Santos Jr., CEO do LIDE China, e o seu cotidiano atual, por exemplo, são repletos de guanxi. O executivo se estabeleceu no país asiático por mais de cinco anos antes de operar estreita relação comercial com os chineses. Primeiro, vieram conexões amistosas e respeitosas. Algumas delas perduram até hoje em sua esfera pessoal. E outras fluem para os negócios.
Mas tudo começou, na verdade, com uma profunda empatia com o então estudante brasileiro. De início, o executivo destaca dois aspectos que chamaram sua atenção em sua jornada com o povo chinês, que se iniciou com um MBA na China: a receptividade e a simpatia com que fora recebido em diferentes ambientes. “Foi como se me estendessem um tapete vermelho”, conta, lembrando como isto se assemelha à forma como os brasileiros gostam de acolher os estrangeiros.
“A primeira vez que eu visitei a China foi em 2005, para um MBA. Eu me mudei para Pequim em 2007. Fiquei lá até 2012. Vi que o povo chinês, independentemente de ser de sua empresa, da sua região, do condomínio onde você reside ou do clube que você frequenta, é muito solícito”, observa o executivo.
Para ele, trata-se de “um povo de atitude genuína, sem interesses financeiros por trás, algo que difere das expectativas de um estrangeiro em uma sociedade comercialmente orientada”. Chineses são pessoas que mudam seu próprio trajeto, doam seu tempo, para garantir que você encontre o caminho correto, quando esta orientação é solicitada em uma rua desconhecida. Não importa em que língua a
solicitação foi feita, lembra Santos Jr..
O seu primeiro Ano Novo Chinês foi vivenciado com a família do proprietário de uma pequena venda perto de sua casa, na China. E foi memorável, ele conta. “Eu ficava lá conversando com o dono, tentando treinar meu chinês. Ele me convidou para passar a data com eles. Foi uma experiência muito especial, simples, mas cheia de carinho”, relata.
Também em seu aniversário, o dono se mobilizou para que ele festejasse a data sem a solidão que normalmente acompanha um expatriado. “Ele queria fazer uma surpresa para mim, comprando um bolo de aniversário, com alguns doces, coisas bem típicas chinesas, e convidou outros chineses e estrangeiros que ali frequentavam pra cantar parabéns na calçada.”
O chinês, assim como o brasileiro, tem interesse em mostrar a sua cultura e as suas raízes, para que o visitante saia com uma boa imagem ou impressão dos lugares que conheceu, conta o CEO do LIDE China. E assim – também aprendeu – começam, igualmente, as mais profícuas relações de negócios, segundo uma prática de “copo e mesa” em que os chineses se orgulham de ser hospitaleiros e mostram seu apreço pela própria culinária e por seus costumes, regando tudo com uma bebida tradicional.
Trocas enriquecedoras e “iluminadas”– Para o professor Luís Antonio Paulino, nas interações culturais, ninguém sai perdendo, diferente de outras relações. E talvez este seja um entendimento mútuo entre brasileiros e chineses, acredita o docente e diretor do Instituto Confúcio da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Sempre que eu falo sobre esse assunto, uso a metáfora da vela. Quando você acende uma vela em um ambiente escuro, você ilumina um pouco. Quando você acende duas velas, você ilumina mais. E uma vela não rouba a luz da outra”, explica, para falar sobre o encontro enriquecedor entre duas culturas tão diferentes de China e Brasil.
No seu caso, a relação de confiança e empatia entre chineses e estrangeiros foi conhecida por necessidade formal, a partir de encontros que realizou em seu trabalho no primeiro mandato do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006). As conexões também foram pessoais antes de avançar para outras questões, lembra Paulino.
“Na China, é difícil fechar um acordo sem que exista uma conexão pessoal, uma empatia antes”, explica. O que ele chama de “relacionamento pessoal” faz parte do processo de confiança mútua que precisa ser estabelecido antes de se tratar de qualquer assunto. É algo ensinado aos alunos do Confúcio, para que as interações realizadas durante os intercâmbios promovidos pela instituição sejam bem-sucedidas.
Ele acrescenta que, em muitos casos, discussões de negócios começam com um jantar ou um almoço informal. Nesses encontros, o álcool, como o tradicional baijiu, tem um papel simbólico. “É uma forma de criar um ambiente descontraído e propício à comunicação”, diz o professor. Para ele, esse processo é uma das maiores diferenças em relação à forma como os negócios são conduzidos no Brasil e em outros países ocidentais, embora seja também, para brasileiros, o caminho encontrado para acolher convidados estrangeiros, mostrando a culinária e a descontração brasileiras, regadas a uma boa bebida.
O idioma e o cotidiano como pontes – A trajetória de Guilherme Santos, executivo da BYD e ex-professor de mandarim da Associação Cultural Chinesa do Rio de Janeiro, é marcada por desafios, superações e um mergulho profundo nas diferenças e semelhanças entre as culturas chinesa e brasileira. Natural de São Gonçalo, região periférica do Rio de Janeiro, Guilherme cresceu em um ambiente de oportunidades limitadas, mas com uma determinação que o levou a trilhar um caminho singular.
“Minha história com a China começa em 2015”, recorda. Na época, ele conciliava a paixão pelo futebol com os estudos. “Eu me dedicava ao futebol integralmente desde os 14 anos, mas sempre busquei uma educação que pudesse abrir portas.” Foi nesse contexto que ele descobriu a Escola Intercultural Brasil-China, em Niterói, uma instituição que combinava ensino tradicional com aulas de mandarim.
A escolha pela escola foi estratégica. “Eu queria algo que permitisse conciliar os estudos e o futebol. Escolhi o Brasil-China achando que seria mais fácil, mas me enganei”, confessa. Guilherme enfrentou um período inicial de adaptação desafiador, com carga horária integral e a necessidade de abrir mão do esporte temporariamente. “Foi difícil. Pensei em desistir várias vezes, mas a escola me abraçou e me incentivou.”
A virada na vida de Guilherme aconteceu em 2016, quando participou de um summer camp na China. “Foi um acampamento de verão voltado para o futebol, organizado pela escola em parceria com o consulado”, relembra. Além de jogar, ele teve a chance de estudar aspectos da cultura chinesa e representar o Brasil. A experiência rendeu frutos: ele voltou ao Brasil com uma proposta para integrar o time de futebol da Universidade Normal de Hubei.
Em 2018, Guilherme embarcou para a China com uma bolsa de estudos. “Cheguei lá em fevereiro, no auge do inverno. Treinar e estudar em um ambiente tão frio foi difícil.” No entanto, ele percebeu que, para prosperar, precisaria se integrar ao cotidiano chinês. “Entendi que, para aprender o mandarim e me comunicar com os jogadores e o treinador, precisava viver como eles.” Concluiu, ali, que o idioma pode se tornar ponte ou barreira nas relações sino-brasileiras. Escolheu a ponte, que foi alicerçada, também, na calorosa recepção dos chineses.
Essa vivência e a imersão no idioma trouxeram um profundo aprendizado sobre a cultura chinesa: “Os chineses são muito conectados às tradições, algo que nem todos os países antigos conseguem manter. Isso se reflete em tudo: desde as refeições até os momentos de lazer.” Além disso, “a China tem uma cultura de coletividade muito forte. Nas refeições, por exemplo, os pratos são compartilhados, o que simboliza essa ideia de união. No Brasil, também temos isso em reuniões familiares e churrascos, mas lá é algo diário”, destaca Guilherme.
Outro aspecto que o impressionou foi a valorização da educação e da disciplina. “Os chineses têm uma mentalidade focada no longo prazo, algo que está em contraste com o imediatismo que às vezes encontramos no Brasil. Essa mentalidade me ajudou a estabelecer metas claras e a persistir nelas.” Hoje, em seu trabalho, Guilherme atua como elo entre os dois países, promovendo negócios e fortalecendo laços culturais. “Minha experiência me mostrou que, apesar das diferenças, brasileiros e chineses têm muito a aprender uns com os outros. Quando entendemos e respeitamos as particularidades de cada cultura, criamos algo muito maior”, conclui.
Desafios e semelhanças nos intercâmbios – Embora os brasileiros e os chineses pertençam a culturas distintas, existem aspectos que aproximam as duas nações, especialmente no que diz respeito ao estilo de comunicação. Luiz Paulino observa que tanto brasileiros quanto chineses pertencem a culturas de “alto contexto”, o que significa que a comunicação entre ambos depende muito mais do contexto do que das palavras em si. “Ambas as culturas são baseadas no contexto geral da comunicação. Por exemplo, temos dificuldade em dizer “não” de forma direta, e isso é algo que os chineses também compartilham”, explica.
Ele menciona que, em muitas situações, o que se quer dizer é expresso de forma indireta, por meio de gestos ou de declarações ambíguas, que dependem de um nível mais profundo de compreensão entre as pessoas envolvidas. Isso é um reflexo da própria maneira de se relacionar de ambas as culturas, em que a empatia e o respeito mútuo são elementos essenciais.
Embora o Brasil e a China compartilhem aspectos culturais, como a cordialidade e a receptividade, e um contexto comunicacional parecido, podem existir diferenças significativas quando se trata, por sua vez, da comunicação no ambiente de trabalho. Santos Jr. ressalta que, por conta da falta de familiaridade com os costumes e práticas de cada país, ainda vê “desafios nas empresas chinesas que operam no Brasil, especialmente em relação
à integração entre os funcionários chineses e os brasileiros”, observa. Ele explica que os chineses recém-chegados ao Brasil, sem conhecimento prévio da cultura brasileira, enfrentam dificuldades para se integrar, tanto do ponto de vista profissional quanto pessoal. Por exemplo, o ritmo de trabalho e as expectativas em relação aos horários podem gerar desconforto. Enquanto os chineses estão acostumados com jornadas de trabalho intensas e reuniões até nos fins de semana e feriados, no Brasil isso é visto com certa estranheza, pois a cultura do trabalho tem uma abordagem mais flexível.
Já Paulino acredita que a principal barreira entre os dois países é a linguística. “No Brasil, falamos português, que é uma língua latina, e isso facilita a comunicação com os países vizinhos e com a Europa. Mas o chinês, com sua estrutura linguística única, torna as interações mais difíceis”, aponta. Apesar disso, ele acredita que o relacionamento entre brasileiros e chineses é enriquecedor e que a interação entre as duas culturas, embora desafiadora, resulta em experiências positivas para ambas as partes.
Guilherme, por sua vez, destaca a diferença no estilo de socialização. “No Brasil, somos calorosos, abraçamos, nos aproximamos rapidamente. Já na China, os laços são construídos de forma mais reservada, mas quando se consolidam, são muito fortes”, observa o executivo da BYD.
Ele também observa semelhanças significativas. “Tanto chineses quanto brasileiros têm uma grande capacidade de adaptação. São povos resilientes, que conseguem encontrar soluções em meio às adversidades”, compara sobre aquilo que acredita ser uma das razões para relações tão próximas e profícuas entre chineses e brasileiros.
Em um mundo cada vez mais interconectado, as histórias de brasileiros que se inseriram no cotidiano chinês e vice-versa destacam que a verdadeira força de uma relação está na capacidade de encontrar harmonia nas diferenças e de construir pontes duradouras com base no respeito e na confiança. Como ensina o ditado chinês, “se queremos dez anos de prosperidade, cultivemos árvores; se quisermos cem anos, cultivemos pessoas.” E é nessa semeadura, feita de trocas culturais e relações genuínas, que se constrói um futuro sólido e promissor entre Brasil e China.
Este texto foi publicado originalmente na revista China Hoje. Clique aqui, inscreva-se na nossa comunidade, receba gratuitamente uma assinatura digital e tenha acesso ao conteúdo completo.
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