China constrói a nova casa do Brasil na Antártica

Começaram em dezembro as obras da nova Estação Antártica Comandante Ferraz.

Natal de 2016. Nos alojamentos emergenciais da Estação Antártica Comandante Ferraz, na remota península Keller, uma porção de terra que se projeta pela Baía do Almirantado, na Ilha Rei George, pesquisadores, técnicos, quadros e oficiais da Marinha do Brasil lá estão reunidos para comemorar a noite do dia 24, véspera do Natal, em meio a uma inusitada plateia de chineses que acompanham, a distância e curiosos, a confraternização dos brasileiros.

Entre os dois grupos, a comunicação se dá por um estreito canal: dois intérpretes chineses (um deles, Wang Teng, morou no Brasil por alguns anos), pelos muitos sorrisos, mímicas, palavras como olá, bomdia e obrigado arriscadas em um ou outro idioma que ambos os grupos se esforçam em aprender e por evidentes demonstrações de cortesia e atenção de parte a parte.

Subitamente, um dos chineses se levanta e cala a todos com uma canção popular no seu país para uma plateia de brasileiros silenciosos e emocionados. A canção escolhida foi Bênção (Zhu Fu, em pinyin).  Sua essência está resumida em seu primeiro verso: “Meu amigo, eu te abençoo para sempre”.

A construção da nova estação brasileira Comandante Ferraz que a empresa chinesa Ceiec está erguendo na imensidão do continente gelado não é apenas a nova casa do Brasil na Antártica como também o começo de uma história de cooperação, amizade e esforço conjunto entre brasileiros e chineses. 

As obras no continente tiveram início em dezembro último. Devido às particularidades de um ambiente sensível e inóspito como a Antártica, o projeto da nova estação foi concebido de forma que todos seus elementos e componentes sejam produzidos na China e montados na Antártica, como um grande jogo de armar. Tudo será feito em quatro fases, duas de produção em Xangai e duas de montagem durante os verões antárticos de 2017 e 2018, que ocorrem no período de outubro a março.

“Se o clima cooperar e não provocar atrasos, em março de 2018 a estação deverá estar pronta”, informa o Capitão de Mar e Guerra Geraldo Juaçaba, assessor especial da Secirm – Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar do governo brasileiro para a reconstrução da EACF. Juaçaba atualmente divide seu tempo entre o Brasil e Xangai, onde, com uma equipe de quatro engenheiros e arquitetos da Marinha do Brasil, supervisiona os trabalhos da Ceiec na China.

A construção da nova Estação Antártica Comandante Ferraz  está escrevendo uma nova história de cooperação, amizade e esforço conjunto entre brasileiros e chineses.

Desafios

Todo esse processo de construção na China e montagem na Antártica de uma edificação do porte da EACF impõe uma série de questões de engenharia, logísticas e ambientais desafiadoras.   

“Em um ambiente remoto como a Antártica existem muitos elementos de incerteza, limites e fatores estimativos, que são o maior desafio para o planejamento da obra”, resume Jiao Yang, um engenheiro civil de 43 anos, gerente responsável pelas obras no continente. Natural de Song Yuan, na província de Ji Lin, Yang tem larga experiência em gerenciamento de obras de engenharia internacionais, com passagens pelo Oriente Médio, África e Sudeste Asiático, mas nada que se compare ao continente gelado. “A Antártica obriga a elaboração de planos de recursos humanos, logística e fornecimento de materiais, cronogramas, gerenciamento de riscos, etc. ainda mais precisos para cobrir todos os aspectos do trabalho, que é fortemente influenciado pelas condições meteorológicas e pelo isolamento do local” , complementa Jiao.

“O primeiro grande desafio é logístico, uma vez que tudo – componentes, equipamentos, materiais e até a energia necessária – deve ser levado de navio de Xangai para a Antártica, em um percurso de 45 dias”, comenta o capitão Juaçaba. Nesta primeira etapa, a missão coube ao navio chinês Yong Sheng, que chegou à Antártica em 15 de dezembro passado dando início à delicada tarefa de desembarque da carga. 

“Embarcar tudo em um navio em um porto urbano é fácil. Desembarcar numa praia antártica sem píer de atracação, utilizando balsas que se deslocam entre blocos de gelo e sob fortes ventos é uma tarefa delicada. Qualquer acidente pode trazer graves consequências, mesmo porque o auxílio médico disponível é limitado”, afirma Cristina Engel Alvarez, uma arquiteta de especialização bastante original: construção em locais remotos.

Doutora pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, há 30 anos Cristina se dedica à arquitetura em locais isolados, tendo participado dos principais projetos da Marinha do Brasil em lugares como Atol das Rocas, Ilhas Trindade e Martins Vaz e Ilha Elefante. Cristina, que já perdeu a conta de quantas vezes esteve na Antártica, está acompanhado o processo da EACF desde a remoção dos restos do incêndio que destruiu as antigas instalações até sua reconstrução. 

“O desembarque é realmente uma operação delicada”, concorda o engenheiro Jiao. “Mas nós desenhamos todas as medidas e o processo completo desde o navio até o canteiro da obra com o apoio dos professores e consultores do CHINARE (Chinese National Antarctic Research Expedition). O clima e o espaço limitado de armazenamento, além das demandas da Fiscalização e do Ibama, o Instituto do Meio Ambiente do Brasil, influenciam na velocidade e avanço do desembarque”, complementa ele.

Na etapa de montagem propriamente dita, a primeira impressão é que o frio seja um grande limitador. Mas como a obra acontecerá apenas no verão antártico, um período de pouca neve, livre de gelo e temperaturas nem tão baixas na Ilha Rei George (oscilam entre –2ºC e +2ºC  em média), o frio não chega a impedir as atividades no canteiro de obras. “O maior problema são os fortes ventos da região”, afirma a arquiteta Cristina. “Qualquer atividade na obra é suspensa quando a velocidade do vento atinge os 40 nós (cerca de 74 km/h), ou mesmo menos que isso para guindastes e içamento de cargas, que podem pendular sob a atuação dos ventos, com graves consequências”, complementa.    

Como a construção não deixa de ser um grande jogo de armar, o segredo está no encaixe perfeito entre as peças, e isso depende da qualidade e dos testes realizados no país de origem, a China, que está um tanto longe. Construir na Antártica não permite improvisações. 

Obra 24 horas

No decorrer do verão antártico existe luz natural praticamente durante as 24 horas do dia. Isso permite que o cronograma de trabalho seja ininterrupto, com atividades em turnos. A ordem é aproveitar as condições amenas do verão e não parar nunca, não importa se é domingo, feriado, Natal ou Festa da Primavera, o Ano Novo Chinês que este ano foi comemorado em 27 de janeiro, com a obra a pleno vapor.

Nos alojamentos, cozinha, lavanderia, recolhimento de resíduos, tudo funciona 24 horas. Não há momento em que as pessoas vão para casa, dia de folga ou outras atividades, como acontece em obras no meio urbano. Não fossem os brasileiros seguirem uma rotina mais normal de alternar trabalho e descanso, não existiria dia ou noite na Estação Antártica Comandante Ferraz.

Construir na Antártica é um desafio. O isolamento, as duras condições climáticas, as rigorosas exigências ambientais e a segurança dos trabalhadores exigem um planejamento extraordinário. 

“Essa é a diferença cultural mais marcante entre chineses e brasileiros”, opina o engenheiro Jiao Yang. “Os brasileiros trabalham muito durante o horário de trabalho, mas também dão muito valor aos períodos de descanso e têm muitas atividades recreativas para passar o tempo. Nós, chineses, misturamos mais trabalho e descanso, e muitas vezes trabalhamos para passar o tempo, especialmente em um ambiente isolado como é a Antártica”, complementa Jiao.

Neste verão, estão envolvidos diretamente na obra 63 chineses, entre operários, engenheiros, fiscais, tradutores e um grupo de oito brasileiros vinculados à Secirm, responsável pelo acompanhamento da obra, além da guarnição regular da base e os pesquisadores brasileiros. 

Segundo Cristina, os chineses são extremamente disciplinados: uma ordem dada é uma ordem obedecida, o que facilita sobremaneira a organização e o andamento da obra. O treinamento recebido na China e mesmo na Antártica tem ajudado muito e os acidentes têm sido raros e de pouca importância, o que é o melhor indicador de adaptação às condições da obra. “Antes de chegar à Antártica, tivemos muita preparação e treinamento com equipamentos de proteção e aquecimento e contra raios ultravioleta. Nossos operários já chegaram prontos para enfrentar as condições difíceis da Antártica. Estamos encarando o frio, vento e neve e superamos várias dificuldades. Estamos garantindo a qualidade e pontualidade da obra, e acredito, ganhando a aprovação e aplausos do Brasil”, orgulha-se Jiao.

Impactos ambientais – Apesar da inexistência de normas específicas para a construção na Antártica (exceto as recomendações gerais do próprio Tratado Antártico e do Protocolo de Madri, a “Constituição” da Antártica), é obrigatória a formulação de um plano ambiental para ser apresentado tanto para o governo brasileiro como para os organismos internacionais. E esse plano segue a recomendação de sempre adotar as normas ambientais mais restritivas, tanto por ser a Antártica o continente mais intocado do planeta como também um laboratório natural onde é indesejável qualquer ação que possa modificar essa condição. E essa orientação certamente acrescenta complexidade à construção da EACF.

A questão começa com o solo já contaminado pelo incêndio que atingiu as antigas instalações da estação. A nova EACF está sendo reconstruída na mesma área e uma exigência fundamental é a de não dispersar os poluentes do incêndio por uma área maior.  Assim, o solo contaminado só pode ser movimentado sobre a área já contaminada e o solo limpo só pode ser movimentado em área limpa.

Apesar da vastidão do território, o espaço para a realização da obra restringe-se ao mínimo essencial para que haja o menor impacto ambiental, evitando-se assim a invasão de áreas com musgos ou de nidificação de aves que fazem parte do ecossistema da Península Keller – e até mesmo para que haja controle efetivo na emissão de ruídos.

Dentro desta pequena porção de “território”, as demandas são muitas: espaço para armazenamento de materiais e contêineres vindos do navio, áreas para manobras de tratores e definição de trilhas para quadriciclos, veículos de neve, bobcats. etc., além da área propriamente dita da obra. A organização do canteiro de obras não é nada fácil. 

A despeito da imensidão do continente gelado, a área destinada à obra da nova estação é mínima para não provocar impactos ambientais desnecessários.

Todo e qualquer resíduo gerado pela obra possui um plano de tratamento, quase sempre terminando com a sua total retirada e retorno ao local de origem, no caso quase sempre a China. Até mesmo os trapos utilizados na manutenção de veículos e contaminados com óleo, por exemplo, não podem ser lavados na obra e devem ser embarcados de volta para sua origem. O mesmo acontece com peças inservíveis sejam de  grandes dimensões ou do tamanho da embalagem do chiclete do operário. Os resíduos são separados por categorias (metais, madeiras, contaminados com óleo, tecidos, papel, plástico, tecidos, inflamáveis, etc.), embalados, etiquetados e, na medida do possível, são ainda pesados. Somente os resíduos orgânicos são incinerados.

Nos alojamentos é feito um rígido controle no abastecimento de água, tratamento dos dejetos líquidos e sólidos e emissão de poluentes no ar. Toda a energia necessária aos alojamentos e para a obra é obtida exclusivamente por geradores diesel. Depois de pronta, a edificação utilizará uma matriz diversificada, que inclui energia eólica, fotovoltaica e diesel.

Na obra é feito um controle rígido do abastecimento dos veículos. As águas servidas são recolhidas e tratadas e são separados materiais e produtos tóxicos ou inflamáveis (a entrada de alguns é proibida).

Todos estes condicionantes ambientais, somados às questões climáticas e logísticas, tornam, de fato a construção da EACF uma obra de complexidade única, razão, talvez, para que as construtoras brasileiras não tenham demonstrado interesse em participar da primeira licitação, originalmente destinada exclusivamente a empresas de capital nacional, que não recebeu propostas.

Brasileiros e chineses estão agora empenhados em um objetivo comum, a reconstrução da casa do Brasil na Antártica. “Além de ser algo memorável – avalia a arquiteta Cristina Alvarez – certamente será um elemento a mais de aproximação entre nossos países e resultará em novos laços de amizade, que independem do idioma que se fale – ou que não se fale!”, finaliza.

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