A mais nova frente de ataque dos EUA contra a China tem o direito como arma e foi motivada pela retórica belicosa do próprio presidente Donald Trump. Ao chamar a covid-19 de “vírus chinês”, Trump apontou a China como culpada pela pandemia. Ao agir assim, ele assumiu todos os riscos e responsabilidades por estimular a sinofobia em seu país onde os chineses são o segundo maior grupo de imigrantes depois dos mexicanos. Já era esperado que a doutrina do “America First” se traduziria em uma política externa protecionista com um viés unilateralista em certos assuntos. Mas não se esperava que tal doutrina fosse ser implementada desconsiderando padrões mínimos da boa diplomacia e do direito internacional. Se levada às últimas consequências, os EUA empurrarão o mundo para uma era do “vale-tudo” no sistema internacional que, sem a estabilidade derivada do respeito às regras, será inseguro e propício a guerras.
Contudo, a única guerra que interessa ao mundo lutar agora e vencer é a que se trava contra a Covid-19. E se depender dos EUA, ela ficará em segundo plano diante dos interesses políticos em jogo. A retórica do Trump tem se tornado cada vez mais agressiva contra a China quanto mais os efeitos econômicos da pandemia nos EUA ameacem os seus planos de reeleição. Recentemente, o presidente americano declarou, sem apresentar qualquer prova, que o novo coronavírus teria sido criado em um laboratório em Wuhan. Ao fazer tal acusação e ignorar qualquer discussão séria sobre a origem do vírus, Trump politiza um problema de saúde global e terceiriza a sua responsabilidade pela ineficiência do seu governo em enfrentar a pandemia em seu país, aumentando o número de contaminados e óbitos, e agravando ainda mais a situação econômica do seu país. A tragédia da Covid-19 recai sobre os EUA não por falta de um plano de contenção do vírus. Afinal, os EUA tinham o National Strategy for Pandemic Influenza, promulgado pelo presidente George W. Bush em 2006, e o Playbook for Early Response to High-Consequence Emerging Infectious Disease Threats aprovado em 2016 durante o governo Obama.
Alguns advogados americanos se empenham em dar suporte jurídico aos ataques do Trump visando responsabilizar legalmente a China pelos prejuízos econômicos sofridos por conta da pandemia global. No dia 12 de março, na Flórida, uma class action em âmbito nacional foi movida por quatro pessoas e um centro de treinamento de beisebol em Boca Raton contra a República Popular da China, a província de Hubei e a cidade de Wuhan. Na denúncia, os autores da ação alegam que a China “knew that COVID-19 was dangerous and capable of causing a pandemic” e que teria “covered it [the fact] up for their own economic self-interest”. Os autores fazem coro com a tese do Trump de que um laboratório de pesquisas de armas biológicas em Wuhan teria deixado escapar a Covid-19 de suas instalações. Na sequência, surgiram outras ações similares no Texas, em Nevada, na Califórnia e no Missouri.
Muito provavelmente estas ações não prosperarão em ração da regra da imunidade de jurisdição do Estado (imunidade soberana) fundada em uma norma de direito internacional costumeiro sintetizada no aforismo par in parem non habet judicium, isto é, nenhum Estado soberano pode ser submetido contra sua vontade ao Judiciário de outro Estado. Fazer a China submeter-se à justiça dos EUA sem o consentimento da própria China, é romper com o princípio da igualdade soberana que rege as relações internacionais.
A regra da imunidade de jurisdição comporta algumas poucas exceções. E mesmo elas não servem para responsabilizar a China no caso em questão. No direito dos EUA, o Foreign Sovereign Immunities Act (FSIA), de 1976, afasta a aplicação da imunidade absoluta quando o Estado estrangeiro 1) pratica uma atividade comercial (comercial activity) e este ato causa um efeito direto nos Estados Unidos (§ 1605 (a) (2)), ou 2) quando há delito territorial (territorial tort) (§ 1605 (a) (5)). Em relação ao primeiro, as denúncias falham em especificar qual atividade comercial relevante a China teria se envolvido e qual a conexão deste fato com a situação da pandemia nos EUA. A segunda exceção refere-se a danos provocados por um Estado estrangeiro em razão de condutas, no Estado local, que causam morte ou ferimentos a pessoas particulares ou danos à propriedade no Estado local. A responsabilidade pelas mortes decorrentes da Covid-19 seria da China, do país do primeiro estrangeiro que levou o vírus até os EUA ou do governo dos EUA que não tomou as devidas precauções quando o mundo já tinha conhecimento do surto epidêmico? Por fim, ainda que um juiz americano entenda ser competente para julgar a causa e condene a China, a decisão não poderá ser executada pois a exceção da imunidade de jurisdição não alcança as medidas executivas. Tal decisão do magistrado americano apenas teria o efeito de produzir danos à imagem da China e prejudicar ainda mais as relações bilaterais.
As ações nos EUA também alegam que o governo chinês, atuando fora dos Estados Unidos, violou suas obrigações internacionais. A FSIA não fornece jurisdição sobre essas reivindicações. E nem o direito internacional trará uma solução. Do ponto de vista deste direito, para se atribuir uma responsabilidade jurídica internacional à China é preciso ter havido ato ilícito que tenha resultado em dano para os EUA. Fundamentar a ação apenas em um dano econômico não é suficiente para atribuir responsabilidade à China. É preciso provar a ilicitude do ato. Caso a China tivesse descumprido uma de suas obrigações perante à OMS, se poderia caracterizar uma violação de regra internacional. Nesta hipótese, o conflito jurídico teria que ser julgado por um tribunal internacional. Entretanto, não há um tribunal internacional sequer com competência para julgar tal conflito. A Corte Internacional de Justiça só poderá receber, analisar e julgar um caso se um país reconhecer a sua jurisdição. Nem a China e nem os EUA reconhecem a jurisdição da Corte.
O caminho escolhido pelos advogados americanos para proteger e buscar a reparação para seus clientes processando a China não é o que lhes dará a compensação econômica esperada. Além disso, estas ações judiciais expõem os EUA ao mesmo risco jurídico na China. Recentemente, um processo judicial na China contra os EUA busca compensação por “danos à reputação causados pelo uso da frase” vírus chinês “pelo presidente Donald Trump” que teria, assim, alimentado a xenofobia e o racismo contra indivíduos de ascendência asiática.
Reconhecendo que aquelas ações judiciais contra a China não podem ser levadas aos tribunais dos EUA, o senador republicano Josh Hawley propôs mudar a lei dos EUA para permitir tais reivindicações. Outras duas senadoras republicanas, Marsha Blackburn e Martha McSally, também propõem mudanças na lei para criar uma exceção à imunidade soberana. Estas propostas de lei claramente tem a China como alvo e terão consequências desastrosas nas relações exteriores se aprovadas. Isto intensificará uma guerra não só judicial, mas legislativa entre países. Em outras palavras, uma guerra dos direitos estatais.
Se houve alguma negligência da parte da China, pode-se dizer o mesmo de praticamente todos os governos do mundo que, mesmo diante das evidências da letalidade do vírus, negaram-se a tomar as medidas de proteção necessárias para conter a propagação do vírus em seus países. Trump foi um deles. Mas somente a China tem se esforçado para cooperar com mais de cem países a fim de ajudá-los na guerra contra o vírus. A China faz isto motivada não por uma obrigação jurídica, mas moral e, também, de solidariedade. No plano das relações internacionais, usar a lei como instrumento de guerra é não só imoral, mas se assemelha, em sua essência, como um ato ilegal.
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