A eletrificação da mobilidade no Brasil

A chinesa BYD abre caminho para a transição da frota

Por Filipe Porto

O Brasil começa a mudar a forma como se move. A transição para a mobilidade elétrica vai muito além da substituição de veículos poluentes por alternativas limpas. Trata-se de repensar a indústria, a energia e as oportunidades de desenvolvimento. Nesse processo, a China vem se consolidando como parceira estratégica, oferecendo investimentos, tecnologia e uma visão de futuro.

Uma história emblemática – Quando a Ford encerrou suas atividades em Camaçari, no estado da Bahia, em 2021, o impacto foi maior do que o fechamento de uma fábrica. Representou o fim de um ciclo para o setor automotivo brasileiro. O encerramento simbolizou o esgotamento de um modelo industrial tradicional, deixando um vazio em uma região que historicamente enfrenta desigualdades econômicas em relação ao Sudeste mais industrializado.

Hoje, no mesmo terreno, uma nova fase está em construção. Em julho de 2025, a montadora chinesa BYD deu início à pré-montagem de veículos elétricos e híbridos em sua nova unidade fabril em Camaçari. Embora a inauguração oficial ainda esteja por vir, a produção já está em andamento.

Atualmente, a planta em Camaçari está produzindo três modelos emblemáticos da BYD em regime SKD (semi knock-down, semi-montados), com montagem local a partir de kits importados. O hatch compacto Dolphin Mini – também conhecido como Seagull – foi o primeiro a sair da linha, seguido pelo SUV Song Pro e pelo híbrido plug-in King (nome de mercado de Chaser 05), todos já em fase de pré-série e prontos para impulsionar a mobilidade elétrica no Brasil.

Mais do que fabricar automóveis, a planta representa a criação de empregos qualificados, a capacitação de trabalhadores locais e um novo modelo de cooperação industrial entre Brasil e China.

Mais de dois mil trabalhadores já foram contratados para a primeira fase de produção, muitos deles oriundos da própria cidade e municípios vizinhos. Institutos de formação técnica locais firmaram parcerias com a BYD para oferecer cursos voltados à mobilidade elétrica e sistemas de baterias. A empresa também iniciou colaborações com fornecedores brasileiros, incentivando a transferência de conhecimento e fortalecendo a indústria regional.

A fábrica deverá atingir a capacidade de produção de 300 mil veículos elétricos e híbridos por ano até 2026, incluindo linhas dedicadas a ônibus, caminhões e processamento de baterias. Trata-se de um dos investimentos industriais mais relevantes já realizados por empresas chinesas na América Latina. Esse desenvolvimento é parte de um movimento mais amplo de integração entre a China e a transição verde do Brasil.

Nos últimos anos, o Brasil tornou-se o principal importador de veículos chineses, sobretudo modelos elétricos e híbridos. Em 2024, as vendas desses veículos cresceram cerca de 85%, segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico. Em resposta, empresas chinesas estão expandindo suas operações locais, apoiando cadeias de suprimento nacionais, construindo infraestrutura e estabelecendo parcerias de longo prazo com a economia brasileira.

O que torna essa transformação ainda mais significativa é o local onde ela ocorre. Em vez de concentrar-se exclusivamente no eixo Sudeste, motor econômico do Brasil, investidores chineses como a BYD estão levando manufatura avançada para regiões historicamente negligenciadas. Camaçari, antes símbolo de retração industrial, começa a se tornar um polo de inovação verde. Isso contribui para reduzir disparidades regionais e reposiciona o Nordeste no mapa do futuro industrial do país.

A ofensiva da BYD vai além dos muros fabris. A empresa já opera uma rede de mais de 450 estações públicas de recarga no Brasil e aposta em soluções inovadoras como o sistema AutoCarga, que dispensa o uso de cartões ou aplicativos. A atuação da empresa também se estende aos centros de pesquisa em Campinas, no estado de São Paulo, onde são desenvolvidos projetos em armazenamento de energia, integração solar e transporte inteligente.

Ao oferecer soluções integradas, a BYD vem enfrentando um dos maiores obstáculos à eletrificação no país: a infraestrutura de recarga. Um estudo da Dados X para a Abeifa, publicado no início de 2025, apontou que muitos consumidores brasileiros desistem ou optam por híbridos durante a jornada de compra por conta da escassez de pontos de recarga pública e do alto custo para instalar carregadores residenciais. A estratégia da BYD contribui diretamente para superar essas barreiras, ampliando o acesso à mobilidade elétrica de forma democrática e sustentável.

Naturalmente, a transformação em curso também provoca reações. A chegada de um novo ator global, com forte capacidade de escala, planejamento industrial e integração tecnológica, despertou preocupações entre alguns segmentos da indústria local. Entidades como a Anfavea, a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, chegaram a levantar questionamentos sobre a concorrência com as montadoras tradicionais. No entanto, o avanço da BYD reflete um modelo produtivo moderno e eficiente, resultado de décadas de investimentos estratégicos em inovação e desenvolvimento. Essa abordagem mostra como a visão de longo prazo, aliada à cooperação internacional, pode gerar benefícios mútuos e impulsionar setores inteiros, especialmente em economias emergentes como a brasileira.

Esse modelo de cooperação ultrapassa as fronteiras da economia. Está alinhado aos objetivos brasileiros de reindustrialização, resiliência climática e crescimento inclusivo. Também reflete uma tendência maior de colaboração Sul-Sul, em que países em desenvolvimento compartilham tecnologias, constroem capacidades conjuntas e promovem interesses comuns.

Lacuna de estratégia – Apesar dos avanços, desafios persistem. O Brasil ainda carece de uma estratégia nacional integrada para a eletrificação da frota. A infraestrutura de recarga é desigual, os incentivos públicos são limitados e as montadoras locais enfrentam pressões para se adaptar às mudanças tecnológicas globais. Embora as parcerias com a China não resolvam todos esses obstáculos, elas contribuem significativamente ao oferecer investimentos, escala e experiência prática.

Hoje, Camaçari é símbolo desse potencial. De cenário de incerteza, passa a representar uma nova era de indústria limpa. A cooperação que ali se desenha é um exemplo de como inovação, inclusão e parceria internacional podem caminhar juntas com benefícios concretos para ambos os lados.

O futuro da mobilidade elétrica no Brasil não será construído apenas com discursos. Ele dependerá de investimentos reais, políticas públicas coerentes e da disposição de integrar regiões historicamente à margem do progresso. Com o apoio de parceiros comprometidos como a China, o Brasil pode liderar a transição energética da América Latina, enfrentando desafios históricos com soluções de futuro.

O que começou em silêncio, com o fechamento de uma fábrica, pode ser lembrado como o marco de uma nova jornada. Nesta história, o Brasil não precisa ser coadjuvante. Pode e deve ser protagonista.

Sem Comentários ainda!

Seu endereço de e-mail não será publicado.