Juan Bonani jogou nas categorias de base do Santos, profissionalmente atuou em alguns times pequenos no Brasil e trabalha como professor de futebol na China desde 2015. Essa sequência pareceria um desdobramento natural da carreira de um atleta. Mas a história não é tão linear quanto parece. Quando Bonani embarcou para Pequim, já havia desistido da carreira de jogador. À época com 28 anos, e os dois joelhos operados, ele havia cursado comércio exterior e feito um MBA em estratégias de negócios. O objetivo dele era trabalhar com importação e exportação, ser uma ponte entre empresários brasileiros e chineses.
Mas Bonani chegou em um momento em que o futebol estava em franco processo de expansão na China. “Logo de cara conheci um brasileiro que estava há 8 anos aqui, hoje 11 anos, que abriu uma escolinha que existe até hoje, e me indicou para trabalhar numa outra que tem parceria com o Manchester City, da Inglaterra. Aceitei o desafio. Fui fazendo um bom trabalho e as portas foram se abrindo”, conta Bonani, que atualmente dá aulas para uma escola de educação formal em Pequim, que conta com alunos chineses e estrangeiros.
O ex-jogador foi absorvido por um mercado que se movimenta por conta do crescente interesse dos chineses pela modalidade. Coincidentemente, no ano de 2015 o futebol da China teve um salto de visibilidade no mercado mundial. O país havia se tornado um destino provável para jogadores de ponta tal qual os principais centros da Europa. De acordo com o site Transfermarkt, naquele ano, os clubes do país investiram 118 milhões de euros em contratações, valor inferior apenas aos 160 milhões da Premier League, da Inglaterra. No ano seguinte, esse investimento quase triplicou: 347 milhões de euros, montante que superou as cinco principais ligas da Europa (mesmo a inglesa, que havia ampliado seus investimentos para 248 milhões de euros). Em 2017, o dinheiro investido pelos times da Superliga Chinesa (a principal do país) atingiu o ápice: 400 milhões de euros.
O fluxo de jogadores de renome internacional aumentou o interesse do público. “O futebol chinês passou por uma grande transformação nos últimos anos, com um alto investimento do país no esporte, e a aquisição de grandes jogadores do futebol mundial. Isso, sem dúvida, fez com que a qualidade do espetáculo aumentasse, além de ter mais crianças do país querendo praticar o esporte”, observa o atacante Elkeson, do Shanghai SIPG. O ex-jogador do Botafogo está na sexta temporada no futebol chinês, as três primeiras atuando pelo Guanghzou Evergrade, quando foi tricampeão da Superliga e conquistou dois títulos da Liga dos Campeões da Ásia. Nesse período, o atleta vem sentindo uma familiaridade maior das pessoas com o futebol. “A gente percebe nas ruas a identificação que o público jovem tem com os jogadores de futebol, principalmente os estrangeiros, que deram uma nova cara para o esporte no país. Esse era o objetivo local, investir pesado parar que tivesse um retorno interno, com a adesão de um grande número de pessoas a praticar o futebol”, comenta.
Na China desde 2015, quando foi contratado pelo Guangzhou Evergrande, o atacante Alan tem percepção semelhante: “Com certeza há uma maior mobilização em relação ao futebol do que havia antes. Acho que a vinda de grandes jogadores despertou o interesse dos jovens em praticar o esporte. O intuito da China é transformar o país em uma potência no esporte, e a tendência, se o ritmo se mantiver assim, é que eles alcancem o objetivo”, diz o ex-jogador do Fluminense.
Foco nos chineses
Após crescimentos sucessivos no capital investido pelos clubes desde 2014, este ano o futebol chinês fez um movimento em outra direção. A federação do país estipulou uma série de regras que restringiram o fluxo de jogadores estrangeiros. Uma delas, por exemplo, limita em quatro o número de atletas vindos de outros países, e em três o de relacionados para as partidas. Outra determinação é que haja três chineses da categoria sub-23 entre os 18 relacionados por jogo, sendo que um deles precisa estar escalado no time titular.
Com essas novas regras, o investimento que bateu em 400 milhões de euros em 2017, este ano caiu para 147 milhões, mesma assim, uma cifra maior que as das ligas da Alemanha, França e Itália, ainda segundo o site Transfermarkt. As ligas mais compradoras são Espanha (277 milhões) e Inglaterra (476 milhões).
Mesmo com as importações em queda, o futebol chinês em 2018 foi o destino de jogadores como o argentino Javier Mascherano, ex-Barcelona, contratado pelo Hebei China Fortune; e dos finalistas da Libertadores de 2017, o brasileiro Fernandinho (ex-Grêmio) e o argentino Nicolás Aguirre (ex-Lanús), ambos agora no Chongqing Lifan.
Na visão de Elkeson, as mudanças não diminuirão a competitividade da Superliga e dos demais torneios. “Acredito que não afetem em nada. Os chineses querem valorizar e elevar o nível nos campeonatos locais, mas o objetivo é a evolução da sua própria qualidade. Por isso, o alto investimento nas categorias de base e a obrigatoriedade de atletas jovens nos times. Acho que é um bom modo de garantir um bom desenvolvimento do esporte no país”, diz.
O atacante Alan considera que as medidas visam um equilíbrio entre atratividade e formação de atletas do próprio país. “Acredito que isso não tenha tanta influência no rendimento dos times dentro de campo. É claro que, ao trazer jogadores internacionais de alto nível, se espera um espetáculo em todos os jogos. Mas o que os chineses querem, na verdade, é o desenvolvimento dos atletas do próprio país para que, no futuro, também seja um exportador de talentos. Por esse lado, é uma estratégia interessante para o crescimento do futebol da China”, analisa.
Para o meia Alan Kardeck, ex-São Paulo e Palmeiras, a presença de jogadores mais novos não difere do que se encontra em outros campeonatos ao redor do mundo. “Na questão do sub-23 é importante para o desenvolvimento dos jovens. Mas no Brasil, na Europa, é comum as equipes terem jogadores jovens. Você encontra dois, três jogadores vindos da base, de 18 a 21 anos”, observa o atleta do Chongqing Lifan.
Essa reserva de espaço para os jogadores jovens contribui para a qualificação do atleta local, segundo Juan Bonini. “É preciso dar oportunidade para a molecada, para aparecer, pegar experiência, senão essa nova geração chega aos 25 anos sem experiência, sem ritmo de jogo”, diz.
Dessa forma também aumenta a probabilidade de surgirem ídolos locais que sirvam de referência para as gerações futuras. “Uma criança chinesa não tem um ídolo em quem se inspirar. Uma criança brasileira vai dizer: ‘Quero ser que nem o Ronaldo’, ‘quero ser que nem o Neymar’, ela chuta a bola e tem um ídolo. Os chineses não têm esse ídolo. Trazer ídolos renomados para a China fez com que o futebol se popularizasse e as crianças se interessassem mais. Os pais passaram a levar ao estádio para assistir aos jogos. E o reflexo disso é a abertura de várias escolinhas”.
Parcerias internacionais
Algumas dessas escolas têm parcerias com clubes europeus, como Manchester City, Toulose (França), Internazionale (Itália) e Ajax (Holanda). Além disso, a transferência de conhecimento também se dá na formação dos clubes chineses. “Profissionais estrangeiros têm vindo para trabalhar nas categorias de base e estão trazendo novas metodologias, novos equipamentos”, conta Bonani.
Em sua terceira temporada no futebol chinês, Alan Kardec observa que esse intercâmbio tem gerado benefícios também entre os profissionais, nativos ou não. “Você acaba pegando uma cultura, uma forma de trabalhar vinda da Europa. Fica bem nítido, quando esses treinadores europeus conseguem implementar isso nas suas equipes, que existe uma evolução bem boa, tanto dos atletas chineses, bem como nós também, atletas estrangeiros que estamos jogando na China”, diz.
Na primeira divisão do futebol chinês, há uma predominância de europeus comandando os times à beira do gramado. Nomes como os portugueses Paulo Bento e Paulo Sousa, os espanhóis Gregório Manzano e Luis García, o italiano Fabio Cannavaro e o alemão Uli Stielike. Já dentro de campo, a maior parte dos profissionais estrangeiros é formada por brasileiros. São 20 (cinco a menos que na temporada anterior), que incluem atletas com história na seleção brasileira, como Hulk, Alexandre Pato e Oscar. Depois aparecem os argentinos (cinco) e os espanhóis (quatro). O maior contingente verde-amarelo foi visto em 2015, com 29 atletas.
Além dos altos salários, outros fatores se tornaram atrativos para os atletas estrangeiros considerarem a China um mercado para continuarem as suas carreiras. “A estrutura e organização não devem nada para ninguém. A liga como um todo está bem estruturada e bem organizada, os estádios etc. É claro que um ou outro campo não é perfeito, mas são coisas que acontecem também no Brasil ou na Itália. Mas, de um modo geral, o panorama é postivo, não há do que reclamar”, conta o meia Hernandes, ex-São Paulo e três grandes clubes da Itália, atualmente no Hebei China Fortune.
Alan Kardec conta que a receptividade foi um fator que facilitou sua adaptação ao país. “Você vai para um país em que a cultura, a alimentação e o idioma são diferentes, em que a comunicação é difícil, mas você tem pessoas – do time, a torcida – que te recebem superbem, começam a te ensinar sobre a cultura, isso ajuda muito na adaptação”, diz.
A qualidade de vida no país é outro aspecto destacado pelo jogador. “Mesmo tendo familiares, amigos, raízes no Brasil, não pretendo voltar tão cedo. Pensando na minha esposa e na minha filha, a questão da segurança é importantíssima. É um país em que você consegue viver bem, tem bons lugares para visitar, conhecer uma cultura diferente”, explica. Acrescenta que a boa adaptação da esposa e da filha de 3 anos foram determinantes para que conseguisse ter a tranquilidade para jogar. “Nós, jogadores, estamos acostumados. Cada hora estamos numa cidade diferente, num país diferente, é uma viagem para cá, outra viagem para lá. Mas, quando envolve família, é um pouco complicado. Então, a minha família se adaptando superbem foi o ponto principal para que eu pudesse me sentir bem”, ressalta.
Outro que não tem planos de deixar a China é Juan Bonani, casado com uma chinesa e pai de uma menina de 1 anos e meio. “Estou totalmente adaptado. A ideia é ficar aqui, no mínimo, por mais dez anos. O mercado está bom aqui, não tem porque mudar. Estão investindo no futebol”, diz. “A China é um país seguro. Tem comunidade brasileira grande aqui em Pequim. A gente sempre se reúne para happy hour, churrasco. A qualidade de vida é muito boa. Pequim é uma cidade grande que tem muita coisa a oferecer”, afirma o professor de futebol.
De fato, o projeto de aumentar a participação da China no cenário do futebol é conduzido pelo presidente do país, Xi Jinping, um entusiasta do futebol. Para isso, tem incentivado a prática da modalidade nas escolas e ampliado os espaços. As projeções são de que até 2020 haja 50 milhões de praticantes, em 70 mil campos e 20 mil centros de treinamento. A China como potência futebolística é uma meta estimada para 2050. Enquanto isso, o mundo gira, a bola rola e a China vem pro jogo.
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