Este ano de 2020 foi um marco na história do direito chinês. Por ocasião da 3ª Sessão da 13ª Assembleia Popular Nacional (APN) aprovou-se o primeiro Código Civil da China. Para entender o significado deste fato voltamos ao ano de 1978 quando a política de reforma e abertura iniciada por Deng Xiaoping deu início a um processo de reconstrução do direito e das instituições jurídicas chinesas que, se já não tinham um papel significativo até então, haviam perdido ainda mais espaço na vida do país durante a Revolução Cultural (1966-1976).
Um dos principais debates jurídicos no final dos anos 70 e nos primeiros anos da década de 1980 consistia na distinção entre direito civil e direito comercial. Naquele momento, não havia muita clareza das fronteiras e domínios comuns destas duas áreas do direito em razão das fragilidades das instituições jurídicas, da baixa compreensão do papel do direito na sociedade e, também, devido à ênfase dada à economia pela nova liderança chinesa.
Este debate se encerra com a promulgação das Disposições Gerais do Direito Civil em 1986 como resposta às necessidades da época. Entretanto, estas Disposições, em que pese tenham lançado as bases para o desenvolvimento do direito civil chinês, ainda eram influenciadas pelas leis da antiga União Soviética. A política de reforma e abertura estava no seu início. A economia marcadamente planificada da China estava em processo de transformação e ainda havia uma percepção muito negativa da economia de mercado.
Mas, em 1992, este processo de transformação ganha novo ímpeto durante a famosa inspeção de Deng Xiaoping ao sul da China, passando pelas cidades de Wuchang, Shenzhen, Zhuhai e Shanghai. A mensagem do líder chinês visava liberar as forças produtivas ao defender a compatibilidade da política de planejamento com o sistema de economia de mercado, oferecendo respostas a uma série de questões que travavam o processo de modernização do país e a reforma das instituições.
À medida que a política de reforma e abertura avançava, as autoridades legislativas aprovavam novas leis, substituíam ou mesmo suprimiam leis antigas relativas aos contratos, ao casamento, ao direito autoral, falência, proteção dos consumidores, direito de propriedade etc. Desde então, quase todas as áreas cíveis passaram a ter as suas leis especiais.
O ingresso da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, abre uma nova fase para o desenvolvimento do direito. A China é levada a adaptar as regras jurídicas domésticas às exigências das regras do comércio internacional a fim de integrar-se à economia mundial mais rapidamente, impactando a realidade jurídica do país.
Finalmente, no governo de Xi Jinping, o objetivo de se ter um Código Civil é alcançado. Em 2014, a sessão plenária do 18º Comitê Central do Partido Comunista da China havia decidido pela elaboração do Código Civil. O projeto de um Código foi uma tarefa política prevista para a APN. No ano de 2017, por ocasião da 5ª Sessão da 12ª APN, aprovou-se as Cláusulas Gerais do Direito Civil, uma versão atualizada aos novos tempos e sem as antigas marcas deixadas pelo direito soviético nas Disposições de 1986. Definiu-se, ainda, o ano de 2020 como o ano para se aprovar o primeiro código civil da China. Coube ao Comitê permanente dedicado aos trabalhos jurídicos da APN, após receber uma proposta preliminar da China Law Society, discutir e encaminhar o projeto de Código para a APN finalizar o processo legislativo.
O novo Código Civil, aprovado em maio deste ano, entrará em vigor em 1º de janeiro de 2021 e abolirá diversas leis anteriores, dentre elas a Lei de Casamento, a Lei de Contrato, a Lei de Propriedade e a Lei de Responsabilidade Civil. O código tem 84 capítulos e 1.260 artigos e abrirá uma nova fase no desenvolvimento da cultura jurídica chinesa. Trata-se de um passo significativo na promoção do Estado de Direito como vetor estratégico para a realização do chamado sonho chinês de revitalização da nação.
O momento é outro para a China se comparado aos primeiros anos da reforma e abertura. O meio acadêmico do direito é muito dinâmico e dialoga constantemente com juristas dos sistemas jurídicos mais estudados no mundo. Há muitos cursos de direito na China e um número expressivo de professores e estudantes. Os juristas passaram a ser mais ativos na proposição de leis e nas opiniões sobre as questões jurídicas, fornecendo um suporte teórico à legislação e ao judiciário. Além disso, eles têm sido fundamentais na promoção da noção de governança baseada na lei, bem como na popularização do conhecimento jurídico na sociedade.
Se o direito chinês tiver a mesma velocidade nas transformações e eficiência nas realizações que se observou na economia chinesa nos últimos 40 anos, então o mundo verá surgir a construção de uma das maiores obras jurídicas feitas por um país na história recente.
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