Considerações sobre a China, a pandemia e a ordem global em transição

Artigo escrito por Gaio Doria, Diego Pautasso e Tiago Soares Nogara

Para além da crise de saúde pública, a pandemia da COVID-19 potencializou as contradições políticas de um sistema internacional em profundo processo de transição. É possível perceber isto através dos significados mais amplos por detrás do formato assumido pelo combate à crise pela China, que prioriza o trato científico e multilateral do tema, e do formato assumido pelos EUA e parte de seus aliados, que insistem em tratar a questão por um forte viés ideológico e se contrapor às diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) e organismos afins. Nesse sentido, o caótico panorama da pandemia serve para entendermos importantes questões concernentes às mudanças em curso na ordem mundial.

Quando o rápido avanço e a agressividade da COVID-19 em Wuhan foi percebido, o governo chinês prontamente reconheceu a gravidade da situação e rapidamente mobilizou o conjunto de sua capacidade estatal – política, burocrática e técnica – para combater a pandemia. Mesmo lidando com uma cidade de 11 milhões de habitantes, inserida na província de Hubei, cuja população é de 60 milhões de habitantes, o governo chinês logrou mobilizar todos os meios ao seu alcance de forma a reverter o quadro inicialmente assustador. Reafirmando, assim, a capacidade de liderança do Partido Comunista da China. A coordenação do emprego de big data, de ferramentas de rastreabilidade até o emprego de expertise e força de trabalho para a construção de novos hospitais em tempo recorde foram fatores fundamentais na luta da China contra o coronavírus.

Curiosamente, o sucesso do esforço chinês diante da pandemia fez com que parte dos países ocidentais subestimasse a gravidade da situação. Assim, enquanto a China teve que descobrir e vencer os desafios representados por essa nova doença, as grandes potências ocidentais que tiveram tempo para tirar todas as lições e se preparar, optaram por subestimar o problema e não tomar as medidas necessárias.

É curioso notar, nesse sentido, que entre os países com maior índice de contaminação e mortes, estão Itália, Espanha, Grã-Bretanha e EUA, isto é, todos situados no Atlântico Norte, o epicentro do sistema mundial há cinco séculos. Isto não demonstra apenas as vulnerabilidades do Estado de bem-estar-social, sobretudo na área da saúde e na capacidade de resposta do poder público de países ricos da OCDE, expressa também a centralidade da política e da ciência, pois um país de altíssimo IDH como a Suécia tornou-se aquele com maior número de mortes por milhão, enquanto o Vietnã, com 100 milhões de habitantes, vizinho da China e sem os mesmos recursos e meios técnicos, garantiu baixíssimo índices de propagação e mortalidade, adotando estratégias de “baixo custo”.

Assim, parte das elites ocidentais, geralmente vinculadas à extrema direita, se resumiu a culpabilizar a China pelo ocorrido. Apesar de ter sido rejeitada, o Departamento de Estado dos Estados Unidos apresentou uma proposta para que um comunicado em conjunto do G7 incluísse a frase “vírus de Wuhan”. O antigo etnocentrismo do “perigo amarelo” ganhou novos contornos, com a narrativa do “vírus chinês”, partindo justamente do país epicentro do H1N1, os EUA. Primeiramente, com as fake news da “sopa de morcego”, seguida da descabida narrativa de que a China teria promovido uma guerra bacteriológica – ironicamente iniciada em seu próprio território – para se beneficiar da debilidade global. Uma tese que simplesmente não faz sentido, e não apenas porque o PIB chinês caiu 6,8% no trimestre, mas sobretudo porque o colapso da demanda global prejudica principalmente aquele que é o maior exportador mundial de bens e serviços: a China.

Em meio à pandemia, mesmo com o Brasil imerso em crises econômicas e políticas, membros do executivo federal preferiram optar pela estratégia de culpabilização da China, seguindo a linha política de Trump, em detrimento de formular políticas e soluções práticas para o enfrentamento da crise epidêmica e social. Os ministros da Educação, Abraham Weintraub, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, acusaram a China de impulsionar pandemia, com o último chegando a empregar a expressão “comunavírus”. Além de inócuos, esses ataques são contraproducentes, dado que o país asiático é o maior parceiro econômico brasileiro desde 2009 e representou, no ano passado, 80% do superávit comercial nacional. O Brasil é o único país da América Latina a superar os US$100 bilhões no comércio com a China e já recebeu US$80 bilhões em investimentos chineses. Ademais, a China produz sozinha mais da metade dos equipamentos de proteção individual (EPI) e equipamentos de saúde do mundo. Não é, sob hipótese nenhuma, interessante para o Brasil buscar rupturas nas relações com a China.

Cabe mencionar, nesse sentido, que países ideologicamente alinhados às perspectivas estadunidenses, como a Austrália, vêm acumulando nesse contexto problemas em suas relações bilaterais com a China, na medida em que insistem em apoiar as teses voltadas à uma suposta origem intencional e planejada da propagação do vírus. Em seu lugar, os chineses enfatizam a necessidade de tratamento científico da questão, visando equacioná-la internacionalmente e a partir da cooperação multilateral. Indubitavelmente, portanto, as entrelinhas da crise mundial instalada pela disseminação do coronavírus expõem a contradição entre distintos formatos de liderança e governança globais.

Por fim, as tensões entre a China e os Estados Unidos atingem patamares cada vez maiores. A cúpula do G7 deste ano, prevista para ser realizada nos EUA, foi adiada para setembro. Nesse interim, Donald Trump decidiu convidar Índia, Austrália, Coréia do Sul e Rússia para a cúpula do G7, numa tentativa de instrumentalização da organização para formar uma frente contra a China. Mais recentemente, a situação se deteriorou ainda mais após a aprovação da nova lei de segurança para Hong Kong pelo parlamento chinês. Os Estados Unidos se conferem o direito de decidir como a China deve lidar com seu próprio país.

Se por um lado, Trump centrou suas ações em responsabilizar a China pela origem da pandemia, além de dirigir vigorosos ataques à Organização Mundial de Saúde (OMS). Os EUA ameaçaram cortar as doações ao organismo multilateral, bem como se retirar do mesmo. Ora, estão fragilizando as próprias estruturas hegemônicas de poder por eles impulsionadas no Pós-Guerra, e cruciais para a consolidação de sua primazia global. Sob o atual governo de Trump, vale recordar que o país se retirou da Unesco, do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e do Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas, além de implodir o pacto nuclear construído após anos de negociações com o Irã. Ou seja, os EUA abriram mão de liderar uma solução abrangente para a pandemia, e sequer atuaram em apoio aos seus aliados ocidentais.

Por outro lado, na abertura da 73ª Assembleia Mundial da Saúde, o presidente da China, Xi Jinping, enfatizou a necessidade de estabelecimento de uma ampla e assertiva diplomacia multilateral na área de saúde. O líder chinês enfatizou, assim, a inevitabilidade de: 1) compartilhar as experiências de controle e prevenção da covid-19; 2) criar uma sinergia global em favor da cooperação destinando recursos materiais, tecnológicos e humanos ao países mais pobres; 3) assumir as responsabilidades globais, no caso da China, disponibilizando US$2 bilhões em dois anos para países mais carentes combaterem a pandemia, a construção de centro logístico para a emergência humanitária global, a criação de um mecanismo de cooperação, como o Centro de Prevenção e Controle de Doenças da África, e ainda a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida, voltada aos países mais pobres.

Nessa linha, o que a divergência de posição internacional entre China e EUA revela? O país considerado líder do “mundo livre” não apenas expôs a fragilidade de seu sistema de saúde privatizado e de um aparelho estatal com graves debilidades, como se mostrou incapaz de prover soluções e liderar as políticas para superação da crise epidêmica global. Talvez essa seja a oportunidade para a China relançar a ideia de uma Nova Rota da Seda da Saúde. O tema já havia sido levantado pela primeira vez em 2015, no Plano Trienal para a Implementação do Intercâmbio e Cooperação em Saúde da “Iniciativa Cinturão e Rota” (2015-2017). A pandemia pode, pois, criar oportunidade para o aprofundamento da integração global neste setor.

Desde os anos 1970 o mundo vem passando por profundas mudanças econômicas e geopolíticas. No cenário da pandemia do coronavírus, essas disfunções têm aparecido de forma ainda mais aguda. Nesse quadro de incertezas e crises, a China deu respostas efetivas para conter o COVID-19 nacionalmente, ao tempo em que enfatizou a necessidade de tratar os efeitos da pandemia por meios multilaterais e ensejando a cooperação entre distintas nações e regiões, visando reforçar a governança global e concretizar sua visão de comunidade global com futuro compartilhado. A China certamente sairá fortalecida por demonstrar ao mundo sua maneira efetiva e fraterna de como lidar com a pandemia.

Contrariamente, os EUA redobram a aposta no unilateralismo e na politização do tratamento da questão, as quais tentam imputar às pretensões econômicas e geopolíticas chinesas. O afastamento da OMS e as acusações de que esta estaria centrada demais na China, apesar dos grandes aportes financeiros de Washington à organização, é um exemplo latente da postura americana frente a maior crise sanitária das últimas décadas.

Diante desse complexo panorama e dos novos desafios ascendentes, nos resta entender como poderão a vir influenciar as novas configurações de poder em um mundo em acelerado processo de transição hegemônica.

 

Gaio Doria é Doutor em Direito (Renmin University of China);
Diego Pautasso é Doutor em Ciência Política (UFRGS);
Tiago Soares Nogara é Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília (UnB).

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