Por Liu Ting
“Durante a apresentação da dança poética A viagem de uma legendária pintura de paisagem, a referida pintura, intitulada Um panorama de rios e montanhas, não aparece. No entanto, o público sente como se de fato tivesse visto e compreendido o espírito traduzido pela pintura. Isso é justamente o que nossa equipe estava buscando. Não se trata de uma reprodução da pintura, mas de uma transmissão espiritual, que presta homenagem a um criador e herdeiro da cultura tradicional chinesa”, explica Xu Junrui, roteirista da obra, em entrevista a China Hoje.
Desde sua estreia no Centro Nacional de Artes Cênicas da China em agosto de 2021, A viagem de uma legendária pintura de paisagem fez grande sucesso, com mais de 247 milhões de visitas na internet. Um clipe da obra foi selecionado para a Festa de Ano Novo na plataforma de vídeo Bilibili, com 180 milhões de espectadores online.
Desde então, apareceu na cerimônia da Festa da Primavera para o Ano do Tigre, realizada pelo Grupo de Mídia da China, e foi lida e discutida mais de 1 bilhão e 700 milhões de vezes na rede social Weibo. Xu destaca que além da pintura em si, que é uma relíquia cultural que preservamos do passado, o público precisa ser capaz de captar seu espírito através da imaginação. É aqui que se entrelaçam o tempo e o espaço, e onde está a chave de seu sucesso.
Uma dança nascida da pintura – A obra Um panorama de rios e montanhas foi pintada em seismeses pelo artista Wang Ximeng, da dinastia Song do Norte (960-1127), quando tinha apenas 18 anos. Nesse rolo de quase 12 metros de comprimento, o pintor utilizou principalmente dois pigmentos minerais, azurita e verde mineral, com as ondulantes montanhas, os rios, mares, cabanas, pinheiros e bambus representados por meio de delicadas pinceladas. O processo criativo constou de cinco etapas de coloração: primeiro foi feito o desenho a tinta, colorido em seguida com ocre, e depois com verde mineral, a seguir com outra camada de verde mineral e, finalmente, com azurita, até alcançar as belas cores da paisagem que salta aos olhos. Xu Junrui considera que a dança e a pintura têm uma conexão natural e que a linguagem corporal da dança pode expressar a própria alma e a estética de uma pintura. “Em 2017, vimos a pintura exposta na Cidade Proibida e fomos atraídos por suas cores. Apesar de não haver personagens na obra, ela possui grande sentido artístico no que se refere à cultura tradicional”, diz Xu.
Os anais históricos têm poucos registros a respeito de Wang Ximeng, por isso criar uma obra capaz de cativar o público foi um grande desafio. A equipe de coreógrafos pensou em todos os materiais necessários para dar vida à pintura, como papel, esferográficas e tinta, assim como no artesanato tradicional envolvido no processo de fabricação das ferramentas, o que também foi uma maneira de homenagear os artesãos e sua dedicação.
A dança poética está dividida em sete capítulos: “desenrolar do rolo”, “os selos”, “a seda”, “os minerais”, “os pincéis”, “a tinta” e “a pintura”. Por meio de técnicas de criação à mão livre e métodos coreográficos únicos, o público pode apreciar a concepção artística da encenação. Na obra, um pesquisador do moderno Museu do Palácio dedicado ao estudo da antiga pintura chinesa Um panorama de rios e montanhas penetra no coração do pintor Wang Ximeng e se converte em testemunha do processo criativo. É assim que o público pode apreciar os minuciosos esforços do pintor, assim como os dos artesãos por trás da obra: os entalhadores de selos, os tecelões de seda, os moinhos de pedra, os fabricantes de pincéis e os fabricantes de tintas.
Os altíssimos coques e os trajes em azul e verde das bailarinas simbolizam a cordilheira. O coreógrafo desenhou uma série de belos movimentos de modelagem para a bailarina principal. As mulheres que dançam são a encarnação das montanhas ondulantes e dos picos sobrepostos. Isso permite que a pintura seja verdadeiramente expressa no palco.
Através do tempo e do espaço – Xu Junrui revelou ter levado quase 20 meses para dar vida a esse programa. A equipe de produção fez um estudo exaustivo de uma grande quantidade de poemas e pinturas da dinastia Song, e recolheu as opiniões de muitos pesquisadores de relíquias culturais, calígrafos e pintores, a fim de aprimorar cuidadosamente cada detalhe da obra e apresentar à audiência a sua melhor versão.
Além de uma série de discussões e intercâmbios com especialistas do Museu do Palácio para aprender a respeito de Um panorama de rios e montanhas, e outras obras e temas relacionados, a equipe também convidou os herdeiros do patrimônio cultural intangível, incluindo artesãos especializados na fabricação de pigmentos utilizados na pintura chinesa, em tinta de Huizhou e pincéis de escrita Xuan, para que comparecessem à sala de ensaio para orientar as atrizes.
Xu manifesta que embora a obra tenha sido concebida em termos artísticos, não perde de vista os antecedentes históricos com um alto nível acadêmico e profissional para apoiá-la. No decorrer do processo criativo, Xu foi percebendo que grande parte do valor de Um panorama de rios e montanhas são os 900 anos que separam, de um lado, o criador da pintura e, de outro, os espectadores, e que a conservação da cultura tradicional é em última instância o que estamos procurando.
Na dança, não se pronuncia nenhuma palavra, mas o roteiro completo tem mais de 7 mil palavras que descrevem claramente a trama e o contexto da história. Além disso, Xu fez modificações no roteiro em cinco oportunidades. No roteiro final, a equipe de produção decidiu acrescentar um personagem moderno como expositor na obra: de um lado, a pintura de Wang Ximeng de mais de 900 anos, que estava a ponto de ser finalizada, e de outro, a pintura pronta para ser exibida. Depois de viajar através do tempo e do espaço, entra-se no mundo interior de Wang Ximeng, e graças a isso o pintor, os artistas e o expositor estabelecem uma relação.
A fim de representar o desenrolar de um rolo de pintura chinesa, o cenário está engenhosamente concebido em círculos concêntricos de múltiplas camadas, com uma cortina circular acima e quatro anéis giratórios embaixo. Durante o espetáculo, a plataforma giratória no chão e a maquinaria no ar giram ao mesmo tempo. Desde os momentos de ação e de calma sobre o palco, até os movimentos e os gestos dos bailarinos, cada detalhe da dança está concebido de maneira elaboradíssima.
Diferentes perspectivas – Xu reconhece que a equipe estava muito nervosa antes da estreia. “A dança é, na realidade, um trabalho incomum, e essa obra em particular não tinha precedentes em outros trabalhos”, expressa. Na noite da estreia, todos da equipe observaram atentamente cada movimento atrás do cenário e, quando desceu o telão, muitos desataram a chorar de emoção.
Depois da estreia, muitos espectadores entraram na internet para compartilhar sua experiência. “O interessante é que o público não toma tudo o que você lhe oferece ao pé da letra”, ressalta Xu. “De fato, cada um interpreta e pode dar sentido à obra a partir de seu próprio ponto de vista.” Desde a estreia, a equipe tem recolhido comentários da audiência e realizado revisões e ajustes. Como disse a diretora Zhou Liya: “Não há uma versão final, apenas a melhor versão”. Nos últimos anos, muitas obras têm recorrido ao passado e aos tesouros nacionais como fonte de inspiração criativa.
A dança Banquete noturno no palácio da dinastia Tang, a dança criativa sobre o sítio arqueológico Sanxingdui Máscara de ouro, o drama de dança Cinco estrelas elevam-se no leste e outras obras artísticas juntaram uma parte do patrimônio cultural tradicional chinês à busca estética dos tempos modernos, o que tem causado uma profunda impressão.
Segundo Xu, o sucesso da dança também tem a ver com o auge do renascimento da cultura tradicional. Muitos jovens foram assistir ao espetáculo trajando uma vestimenta hanfu – a roupa tradicional da etnia han – e alguns deles foram assistir mais de uma vez. “O público todo olha nosso trabalho com uma lupa, o que nos comove profundamente, mas também nos faz sentir o peso da nossa responsabilidade”, menciona Xu.
Hoje sentimos florescer a identidade cultural das gerações mais jovens, por isso vivemos o momento mais propício para o renascimento da cultura tradicional. “Como criadores, temos muita sorte e deveríamos aproveitar essa oportunidade para descobrir mais tesouros da civilização chinesa”, conclui Xu
Que trabalho artistico magnifico! Amei conhecer um pouco dos bastidores tais como,pesquisa histórica,valorizacao dos artesaos,sensibilidade na busca da transmissao do sentido da obra através da dança . Parabéns!