A China do bem-estar social avança

Por Evandro Menezes de Carvalho*

O Ocidente capitalista costuma dizer que os regimes comunistas não são competitivos e inovadores o suficiente porque a população se acomodaria diante da certeza da proteção do Estado. Este raciocínio, problemático pelo que oculta sobre as ajudas estatais dadas aos empresários pelos governos dos países capitalistas, não se aplica na China. Devido à sua população de 1,4 bilhão de pessoas, o jovem chinês e seus pais sabem que não haverá vida fácil no ultracompetitivo mercado de trabalho chinês.

Teríamos que voltar ao final da década de 1970 e início da de 1980 para entender como a China se tornou esta máquina de produtividade que rapidamente alçou o país à condição de segunda maior potência econômica do mundo. Mas, para pegarmos um atalho devido ao curto espaço de linhas deste artigo, cito uma famosa frase que se costuma atribuir a Deng Xiaoping (muito embora haja controvérsia sobre se ele teria, de fato, dito esta frase) que retrata bem o espírito das primeiras décadas da política de reforma e abertura: “enriquecer é glorioso, mas alguns vão enriquecer primeiro”. A palavra de ordem para o chinês era crescer e prosperar, quase sem limites. O limite era posto depois que a riqueza se aflorava a fim de dar conta dos excessos que prejudicavam a manutenção da estabilidade social. Este foi, grosso modo, o método chinês de governar e tem sido assim até hoje. Mas há mudanças significativas em curso.

Alguns fatos recentes evidenciam que o governo do presidente Xi Jinping quer promover o crescimento econômico de modo compartilhado, ou seja, crescer sem deixar ninguém para trás. Os críticos do comunismo chinês chamarão a isso de intervenção indevida do Estado na economia. O governo da China, por sua vez, chama de combate a práticas anticompetitivas e abusivas que têm prevalecido sobre as condições dignas de trabalho do cidadão chinês. O objetivo é claro: inverter o ônus do crescimento que antes estava concentrado sobre os ombros do trabalhador explorado.

Três fatos mais recentes – No início de setembro deste ano, o Ministério dos Transportes da China e o órgão regulador da internet tomaram algumas medidas para impedir a exploração dos motoristas que trabalham para as plataformas de entrega de comida. Estes motoristas não possuem direitos trabalhistas, não contam com seguro social e plano de saúde, e costumam cumprir extenuantes jornadas diárias de trabalho. A situação precária deles tem sido objeto de severas críticas nas redes sociais. As medidas das autoridades chinesas atingiram empresas como Meituan e a Ele.me do grupo Alibaba que se comprometeram a melhorar a segurança e os direitos trabalhistas dos motoristas.

Ainda neste mesmo mês de setembro, o tribunal superior e o Ministério do Trabalho da China emitiram declaração sobre a ilegalidade da chamada “cultura de trabalho do 996”. Este número faz referência à jornada de trabalho que começa às 9h e se estende até às 21h, durante seis dias por semana. Celebridades chinesas do mundo dos negócios como Jack Ma, do grupo Alibaba, e Richard Liu, da plataforma de e-commerce JD.com, haviam defendido a cultura do 996 como via para o êxito profissional. Todavia, o que esta modalidade de exploração dos trabalhadores tem garantido é o sucesso das empresas que os exploram. As decisões judiciais na China têm reafirmado o direito do trabalhador ao tempo de descanso e aos feriados, bem como o devido cumprimento da jornada nacional de trabalho que é de oito horas por dia, com um máximo de 44 horas semanais. Caso o empregado ultrapasse esta carga horária, serão devidos a ele os pagamentos de horas extras. A orientação da Suprema Corte chinesa certamente terá repercussão sobre a decisão dos tribunais inferiores. Mas a medida já vem surtindo efeito antes mesmo deste efeito cascata no sistema de justiça chinês. Algumas empresas começaram a abandonar as práticas abusivas e se ajustaram aos padrões da lei trabalhista chinesa. Este foi o caso, por exemplo, da fabricante de smartphones Vivo.

Por fim, em julho deste ano, o governo chinês anunciou novas regras para as empresas privadas de educação, proibindo aulas com finalidades lucrativas em matérias escolares básicas. O intuito do governo é aliviar as pressões financeiras sobre as famílias no gasto com a formação do filho para o competitivo mercado chinês. A medida afetou as ações de empresas milionárias do setor, dentre elas a TAL Education Group e Gaotu Techedu. O que essas medidas têm em comum? O objetivo de promover o desenvolvimento saudável e sustentável para ampliar a população de classe média na China e reduzir a desigualdade social. O desafio é conseguir equilibrar uma sociedade baseada na eficiência da produtividade com um padrão de bem-estar social adequado para todos. Esta ideia traduz o que o presidente Xi Jinping tem chamado de “prosperidade comum”.

Enriquecer é glorioso, mas aqueles que enriqueceram primeiro não poderão atrapalhar ou impedir que a sociedade inteira também possa colher frutos e participar do crescimento econômico chinês. Afinal, como disse, de fato, Deng Xiaoping: “pobreza não é socialismo”.

Este texto foi publicado originalmente na revista China Hoje. Clique aqui, inscreva-se na nossa comunidade, receba gratuitamente uma assinatura digital e tenha acesso ao conteúdo completo.

*Editor-Chefe da China Hoje. Professor da UFF e FGV. Pesquisador Sênior do Institute for Global Cooperation and Understanding (iGCU), da Universidade de Pequim.

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