Requalificar a relação com a China

Para Batista Jr., momento é promissor para um salto de qualidade nas relações bilaterais

Por Evandro Carvalho e Alfredo Nastari

Paulo Nogueira Batista Jr. é um dos mais proeminentes economistas brasileiros, com ampla vivência em assuntos internacionais. Formou-se pela PUC-RJ em 1977, obtendo mestrado no ano seguinte na London School of Economics. Ocupou várias posições de destaque na área econômica nos anos 1980, foi diretor do Brasil no FMI de 2007 a 2015 e vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, o NDB, o Banco dos Brics, até 2017. Carioca, hoje com 68 anos. Nesta entrevista a China Hoje, ele fala sobre as perspectivas das relações Brasil-China, o futuro dos Brics e do NDB.

China HojeComo o senhor enxerga o cenário de oportunidades que se abre com o início simultâneo dos terceiros mandatos do presidente Lula e do presidente Xi Jinping?

Batista Jr. – É um cenário de oportunidade de dinamismo, porque do lado da China nós temos uma economia em crescimento há décadas. Houve uma pausa, uma interrupção durante a pandemia, mas o crescimento está sendo retomado agora em 2023. É possível até que a meta de 5%, que é meta oficial de crescimento do PIB, seja superada pela China em 2023, e o crescimento deve prosseguir nos anos futuros.

Isso para o Brasil é muito bom porque a China já era há algum tempo, desde 2009, nosso principal destino em termos de exportações e é muito positivo para nós, evidentemente, que o principal mercado continue crescendo de maneira dinâmica, como tem feito a China.

China Hoje – Neste cenário, qual deveria ser, na sua opinião, o foco, a prioridade do Brasil nas suas relações com a China?

Batista Jr. – Este é um tema muito vasto, mas creio que uma prioridade importante para o Brasil é requalificar a relação com a China, não apenas expandir, mas mudar sua qualidade também. Isso corresponde a uma mudança de padrão que o Brasil pretende seguir com o novo governo Lula.

Então, por exemplo, é interessante para nós exportar primários para a China, mas também é interessante diversificar nossa pauta com a China introduzindo produtos de maior valor agregado. O governo Lula tem falado isso. É interessante para o Brasil atrair investimentos chineses? Sem dúvida. A China é o maior investidor, o Brasil é o maior campo de investimentos diretos da China na América Latina, e deve continuar a ser importante.

Mas é interessante que esse investimento chinês venha para ativos novos, venha a construir capacidade adicional e não apenas adquirir a capacidade existente. Ao trazer investimentos novos, os chineses devem estar dispostos também, acredito, o Brasil deve negociar isso, a transferir tecnologia para o Brasil. Apenas não é um trunk key, porteira fechada, é um processo aberto no qual os dois países possam se beneficiar.

Eu entendo a China muito aberta a esse tipo de negociação. Os chineses, como parceiros, têm a grande vantagem de ser um país em desenvolvimento, uma economia tão emergente como a nossa, avidamente emergente, diferentemente da nossa. Sendo assim, a China compreende os problemas e as aspirações de países em desenvolvimento como ela. Então eu vejo com muito otimismo a possibilidade de requalificar a relação China-Brasil.

O outro ponto importante é a questão da Iniciativa Cinturão e Rota, a Nova Rota da Seda, como às vezes é chamada. É um grande projeto que já inclui dezenas de países em vários continentes. É natural que o Brasil participe como país interessado em atrair investimentos chineses. Não me surpreenderia que o Brasil venha a assinar um memorando de entendimentos que inclua o país nessa grande iniciativa. No governo Bolsonaro só não foi feito porque havia uma certa resistência à China, totalmente irracional, e agora essa resistência passou. Então o Brasil deve negociar, no meu entender, um programa de investimentos ambicioso como parte da sua inserção nessa iniciativa da China.

China Hoje – Os Brics estão começando sua segunda década com várias discussões de rumos pela frente, em especial a admissão de novos membros, como a Argentina. Na sua opinião, qual é o futuro do bloco?

Batista Jr. – Os Brics vão continuar sendo um fator importante na geopolítica mundial. Até porque o grupo reúne cinco países da economia emergente que têm um grande peso na economia mundial. China, Índia, Rússia, Brasil e África do Sul. A África do Sul é menor, mas uma das principais economias da África Subsaariana. O Brasil é o principal país, a principal economia da América Latina, a Rússia na Eurásia, a Índia no sul da Ásia e a China no leste da Ásia. Então, esse grupo vai prosperar.

Há interesses comuns que mantêm esse grupo unido. Não é por acaso que ele está aí atuando desde 2008, porque há fatores que reforçam, funcionam com o cimento dessa unidade, desse bloco.

A questão da expansão dos Brics é duvidosa. Sou favorável à expansão do banco, mas tenho dúvidas sobre se convém ao Brasil a expansão do grupo. A China vem pressionando por isso há anos, a Rússia aderiu à ideia mais recentemente, por motivos evidentes: quando se está em um confronto militar com o Ocidente, gostaria de ver reforçada a aliança que tem com os outros quatro Brics.

Mas o Brasil tem que pensar bem. Tradicionalmente sempre fomos contra essa ampliação, desde o meu tempo lá, depois no governo Temer até o governo Bolsonaro. Não sei qual vai ser a posição do governo Lula. Há dúvidas dentro do governo, pelo que eu sei. Qual é o problema? É que isso dilui a nossa participação no grupo, e o grupo crescendo se torna menos capaz de agir, fica mais heterogêneo.

E aí a pergunta: quem entra? Entram países grandes e independentes ou entram países que possam se revelar caudatários do Ocidente ou caudatários da China, desequilibrando o grupo? Então é uma questão complexa essa da ampliação dos Brics. A Argentina é um país muito próximo a nós, ótimo. O problema é saber o seguinte: como ficará Argentina numa próxima eleição este ano? Ela voltará a ser governada por políticos tipo o Macri, que tem uma relação menos comprometida com o projeto de independência? São dúvidas legítimas que o Brasil pode ter e deve examinar bem.

China Hoje – Com relação ao NDB, o banco dos Brics, quais são, na sua opinião, os desafios que a nova presidente, Dilma Rousseff, irá enfrentar? Que relevância o banco pode almejar nesse período da gestão dela?

Batista Jr. – A presidenta Dilma está acostumada a desafios. Foi presidente do Brasil, que é um dos cargos mais difíceis do mundo, em situação muito complicada. Então ela tem muita bagagem e essa bagagem vai ser muito necessária agora porque o banco está patinando e precisa de um impulso, precisa de uma liderança forte.

Vou dar dois exemplos: o banco demorou muito a atrair novos membros e a operar com as moedas nacionais dos países-membros. O banco sofreu muito com a pandemia, que atingiu Xangai pesadamente. Isso fez com que, por incrível que pareça, o comando do banco se ausentasse da sede por longos períodos. Como pode um banco funcionar com o comando não só fora do escritório como fora da cidade, fora da China? Uma irresponsabilidade.

Estou torcendo para que a Dilma chegue lá e exerça o seu tradicional trator que foi muito criticado, mas que pode ser útil num banco que está deixando muito a desejar. Eu lamento dizer isso porque fui um dos fundadores desse banco, então foi com grande satisfação que vi o Brasil prestigiar o banco indicando a presidenta Dilma para a presidência do banco, para cumprir o que falta do nosso mandato lá e com a presença do presidente Lula à sua posse. Mais do que isso, o Brasil não pode fazer nada para demonstrar o seu interesse no NDB, que é a principal criação dos Brics, um sinal fulgurante do interesse brasileiro agora no governo Lula.

China Hoje – Qual a sua opinião sobre a recém-anunciada permissão de China e Brasil transacionarem diretamente em yuan e real? . Que impacto isso pode ter? Que potencial de incremento tem para nosso comércio bilateral, para nossa relação com a China e para o próprio sistema financeiro?

Batista Jr. –Essa tendência bypassar o dólar é uma tendência que vinha acontecendo e se acentuou com a crise em torno da Ucrânia, com a Guerra da Ucrânia, situação em que os países se deram conta de que que os americanos e os europeus, arrastados pelos americanos, estão dispostos a qualquer limite no uso militar das suas moedas e do seu sistema de pagamentos. Então os países estão buscando alternativas ao dólar.

O dólar no século XXI virou a nova relíquia bárbara. Não funciona mais como eixo do sistema monetário por culpa dos americanos. Assim como o ouro deixou de funcionar, era chamado por Keynes de relíquia bárbara no século XX, no início do século XX, agora a relíquia bárbara é o dólar e os países estão procurando bypassar o dólar. Isso reduz os custos de transação e reduz os custos políticos.

Esse acordo de swap de moedas para permitir o uso de moedas nacionais, real e yuan nas transações bilaterais China-Brasil, é muito positivo. Está sendo feito pela Rússia com a Índia, por exemplo, pela Rússia com a China, e vai ser cada vez mais comum à medida que as pessoas perceberem que o dólar não é confiável e que o custo de transacionar via dólar pode ser suprimido por transações diretas.

Então eu vejo isso como muito positivo, como mais um sinal de um fenômeno maior: que é a multipolarização do mundo. Os americanos podem não gostar, os europeus podem não gostar, mas é uma tendência e eu diria que inevitável. Eu não gosto de usar muito essa palavra inevitável, porque não acredito que a história seja movida por fatalidades, mas o processo está em curso e vai ser difícil de reverter. Ainda que os americanos tentem e procurem, por exemplo, conter a China, conter a Rússia. Eles estão fighting a losing battle, lutando uma batalha que estão perdendo e eles vão se dar conta cada vez mais disso.

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