A força que move o agronegócio brasileiro

Brasil e China criaram uma relação de interdependência que precisa ser aprofundada

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A parceria do agronegócio brasileiro com a China, que começou no comércio e evoluiu para os investimentos, chegou a um grau de importância para as duas economias do qual não dá para recuar. Pelo contrário, a expectativa é continuar pavimentando essa aliança e avançar em várias direções, entre elas, a maior presença do Brasil nas importações chinesas de produtos semielaborados e acabados, e não só de commodities agrícolas e proteína animal.

Além do comércio nos dois sentidos, também estão na agenda de estreitamento dessa relação: aporte de capital chinês em infraestrutura, inclusive logística de transportes, cooperação em tecnologia e inovação, bem como na agricultura, ampliando a eficiência da produção dentro e fora das propriedades rurais. Até mesmo no complexo grãos e carnes, o forte dessa parceria, existem brechas para serem exploradas, assim como em produtos ainda de pouca presença no mercado chinês – café, açúcar e algodão.

“Este é um casamento inevitável, que não foi planejado pelos dois governos e criou uma dependência mútua. Se a China não valorizar nossa produção, o país cai nas mãos dos Estados Unidos. Não existem outros países nessa história com volumes de commodities suficientes para suprir a demanda dos chineses”, afirma Marcos Sawaya Jank, professor de agronegócio global do Insper e titular da Cátedra Luiz de Queiroz da Esalq-USP.

De agora em diante falta consolidar mais essa cooperação. “O governo brasileiro podia ajudar criando uma visão estratégica, não só de curto prazo, como acontece hoje. Precisamos ganhar uma consistência de longo prazo nessa aliança, é um desafio para os dois lados, mas particularmente para o Brasil, que não olha um horizonte mais longo”, avalia o especialista.

Complementaridade – O coordenador do GV Agro e ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues concorda com a visão de uma interação mais estruturada. “É uma complementaridade natural. A China tem 20% da população mundial e 10% das terras aráveis, o que gera uma demanda de alimentos inequívoca e requer parceria com um país grande, como o Brasil. Essa aliança tinha de acontecer porque nossa oferta se soma à necessidade deles”, diz.

Na opinião de Rodrigues, o Brasil tem de aproveitar a boa relação com a China – “fator que impulsiona o crescimento do agronegócio brasileiro” – para se fortalecer como um dos principais fornecedores globais de alimentos e ter um papel ainda mais relevante na segurança alimentar no futuro. De acordo com estudos da FAO e USDA (Departamento de Agricultura dos EUA), para o planeta ampliar em 20% a oferta de alimentos nos próximos dez anos e, com isso, afastar o risco de fome, o Brasil terá de incrementar sua produção em 40%, no mesmo período, bem à frente de Estados Unidos (12%), Europa, China, Índia e Rússia (14%).

Outro fator que dará vida longa a essa relação bilateral é a necessidade crescente do Brasil de mirar as exportações, diante da “tragédia” que a previsão de queda de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) significará para o mercado interno, ressalta o economista Fábio Silveira, sócio-diretor da MacroSector Consultores. “A China é, disparado, o principal parceiro do Brasil, seja do agronegócio ou de outros produtos. Estados Unidos representam metade do peso da China. Neste momento delicado das contas internas brasileiras, com tendência de piora por causa da recessão global, é mais conveniente tratar bem nosso cliente histórico, inclusive porque ele poderá produzir grãos e petróleo na África e ser menos dependente da nossa produção”, prevê, referindo-se à “Rota da Seda”, projeto chinês de US$ 1 trilhão para infraestrutura na Ásia, Europa, Oriente Médio e África.

No ano passado, do total das exportações brasileiras (US$ 225,4 bilhões), 28% foram para a China, bem acima do segundo maior destino – EUA, com 13%. Dos embarques para os chineses, o agronegócio respondeu por 42% (US$ 26,5 bilhões), dos quais US$ 20,5 bilhões somente em soja em grãos e US$ 4 bilhões de carnes de frango, bovina e suína. Ou seja, quase 100%.

Maior que a soma – Para o presidente-executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, “o agro é a salvação da lavoura porque, embora nossa dependência se concentre em três produtos, o agronegócio é quase a soma dos outros dois”, exemplifica, referindo-se a soja, petróleo e minério de ferro, que acumularam vendas de US$ 16,6 bilhões, US$ 9,509 bilhões e US$ 7,545 bilhões, respectivamente, de janeiro a maio deste ano.

Castro sublinha que a China é responsável por 90% do superávit da nossa balança comercial acumulado nos primeiros cinco meses de 2020 – US$ 14,210 bilhões do total de US$ 16,349 bilhões, graças ao aquecimento da demanda dos países asiáticos, de janeiro a maio frente a igual período de 2019 – crescimento de 16,8% no valor exportado para o continente. Os chineses intensificaram importações para engordar estoques, diante da insegurança causada pelo coronavírus. “O peso da China no nosso resultado comercial não se muda de uma hora para outra”, constata o executivo da AEB.

Outro dado indica a relevância do comércio entre os dois países: o único país com que o Brasil ampliou importações em 2020 foi a China. De todos os demais, as compras brasileiras caíram mais de 11%. “Nos próximos dois anos, a China continuará absoluta nas nossas compras externas. Hoje, 85% do que o Brasil importa da China são manufaturados, e quase 100% do que exportamos são commodities”, acrescenta Castro. “Nossa dependência não está só na exportação, está na produção mesmo”, ressalta. “Temos de torcer para ter sol e chuva na hora certa.”

Marcos Jank lembra que a sinergia entre o agronegócio e a China foi fruto das revoluções nos anos 1970, que levaram, primeiro, ao fenômeno da soja, desta para o das carnes e, agora, para algodão, celulose e outras commodities. Há 40 anos, Brasil e China, as maiores economias da América Latina e da Ásia, iniciaram reformas e ficaram entre os quatro maiores produtores e exportadores mundiais de produtos agropecuários e alimentos. “As profundas transformações se casaram em 2000, quando a demanda explosiva por proteína animal da classe média emergente chinesa se encontrou com a imensa oferta de soja do cerrado brasileiro”, explica o especialista. A soja, uma planta originária da China, é a principal fonte de proteína da alimentação animal.

Crescimento exponencial – Os números mostram o resultado: de 2000 a 2020, as importações chinesas saltaram de 2% para 35% da pauta exportadora do agro brasileiro; a China se tornou o principal cliente global do Brasil, bem distante de EUA e Europa. O agronegócio responde por 50% das exportações totais para a China; o Brasil virou o principal fornecedor de produtos agropecuários para a China, suprindo 20% das importações, e primeiro lugar nas compras dos chineses de soja, celulose, açúcar, algodão e carnes bovina e avícola. O crescimento médio das exportações brasileiras para a China foi de 20% ao ano, a partir de 2000 – em alguns produtos foi de 41% (algodão) e 64% (açúcar). O valor das vendas pulou de US$ 1 bilhão para US$ 34 bilhões, de 2000 para 2019.

Essa radiografia está no livro “Parceria Brasil-China para a Agricultura e a Segurança Alimentar (China-Brazil Partnership on Agriculture and Food Security), lançado em junho pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e pela China Agricultural University (CAU), e do qual Jank é um dos coordenadores.

Ainda dá para ampliar mais a pauta de exportação, com diversificação e adição de valor nas vendas para o mercado chinês. Segundo o professor do Insper e da Esalq-USP, o “casamento entre a demanda deles por proteínas vegetais para produzir proteína animal lá provocou o avanço da nossa produção”. Nossa pauta foi beneficiada quando a China deixou de comprar alguns produtos dos EUA, por causa da guerra comercial. “O salto foi forte em celulose e carne suína, nesta por causa da peste suína africana. Temos oportunidade de vender milho, e a pandemia global impulsionou nossas exportações de carne bovina”, explica. Já a abertura do mercado de trigo e arroz será mais difícil por causa da autossuficiência chinesa.

Potencial de crescimento – A relação entre as importações chinesas e seu consumo doméstico indica o potencial para as exportações brasileiras. Embora a China seja o principal cliente do Brasil em vários produtos e o Brasil seu principal fornecedor nesses mesmos itens, essa relação é baixa. Fora a soja, em que as importações do Brasil representam 90% do consumo na China, em carnes não passa de 10%, com exceção da carne bovina (30%).

Para o sócio-diretor da MacroSector Fábio Silveira, o Brasil precisaria estreitar a cooperação para abrir novos mercados, vender mais farelo de soja e açúcar, suco de laranja e fumo. Outro exemplo é o café: em 2019, a China ocupou a 34ª posição entre os países que mais consomem o grão brasileiro, apesar do salto das exportações de 328% na última década (US$ 177,4 milhões no ano passado). “Precisamos continuar investindo em tecnologia e pesquisa para melhorar a qualidade do nosso café e atender à demanda chinesa, que está aprendendo a consumir a bebida”, diz Nelson Carvalhaes, presidente do Cecafé (Conselho dos Exportadores de Café do Brasil).

A guerra comercial fez do Brasil o maior exportador mundial do algodão para a China, além do avanço nas compras de carnes. “O comércio só aumentará, e a dependência mútua já consolidada em alguns itens vai se estendendo a outros. Os chineses querem nos vender pescado e hortifrútis. Exportando para eles mais carne em vez de tanta soja, é uma maneira de agregar valor às nossas vendas”, comenta Jank.

Produtores de algodão comemoram a chance de assumir um protagonismo nas importações chinesas do produto, também fruto da guerra comercial. O aumento foi tão expressivo – mais de cinco vezes do ano comercial de 2017-18 (agosto a julho) para 2018-19 – que tudo indica que a manutenção dessa conquista continuará, mantida, prevê Marcelo Duarte, diretor de Relações Internacionais da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa).

De 2007 a 2017, o Brasil representava 5%, em média, das importações chinesas de algodão (130 mil ton ano), saltou para 21% em 2019 e, neste ano, alcança 35% (557 mil ton). As projeções são tão otimistas – apesar da forte concorrência e da queda da demanda provocada pela Covid-19 – que a Abrapa mantém o projeto de abrir escritório em Cingapura, vizinho da China, para marcar maior presença nos asiáticos.

Outras áreas de cooperação potencial são as da segurança alimentar e da sanidade dos alimentos, mais relevantes depois da pandemia global e, no caso da China, com o agravante da peste suína africana. A previsão é o Brasil sair fortalecido por não ter apresentado, até agora, problemas na produção e na exportação de alimentos, segundo Jank. Mas as cadeias da proteína animal dos dois países poderiam estar mais integradas, com uma parceria estratégica de longo prazo no setor. “A pandemia tem agregado para o Brasil, e as condições negociais podem melhorar. O incremento nas vendas para a China verificado em 2019 se acelerou neste ano, com a demanda aquecida por causa da Covid-19, momento em que a briga com os EUA ainda não está resolvida”, prevê.

Essa é uma agenda destinada a avançar por envolver duas economias importantes e em crescimento. “As possibilidades são amplas, mas o desafio é encontrar modelos de fato sustentáveis”, sublinha Marcos Jank. “Se o governo brasileiro conseguir estreitar nossas relações com a China, podemos diminuir os riscos de segurança alimentar no futuro. A relação bilateral é muito importante para os dois países”, completa.

Aproveitar oportunidades – Na mesma linha vai a opinião do presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja – Aprosoja Brasil, Bartolomeu Braz: “Não temos relato de produtor com coronavírus, o agronegócio não parou com a pandemia”. Até agora, as brechas de maior inserção no mercado internacional foram bem aproveitadas. “Ocupamos o espaço da Argentina quando taxou as exportações de soja; mais recentemente, a guerra comercial. Agora, com a necessidade de países populosos e com altos volumes de importação de alimentos – além da China, a Índia – de afastar as incertezas no abastecimento”, destaca.

Enxergando “uma parceria bastante duradoura” do agro com os chineses, Braz complementa que, “quando se pensa em soja sustentável, se pensa no Brasil, disparado com o melhor teor de proteína do mundo”. Para o presidente da Aprosoja Brasil, o Brasil continua uma potência futura com a transformação de áreas de pastagens degradadas em agricultura e pecuária. “Temos capacidade, ciência e pesquisa para produzir cada vez mais”, argumenta. A parceria pode ser ampliada com a maior presença do capital chinês no Brasil. Para reduzir a dependência de multinacionais no escoamento de suas importações, a China vem adquirindo corretoras de commodities, concorrendo com gigantes como a Bunge. Assim surgiu a trading estatal chinesa Cofco International, uma das maiores exportadoras de soja do Brasil.

Outras aquisições aconteceram em químicos, fertilizantes e logística, observa Tulio Cariello, coordenador de pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). A tendência é mais capital chinês na logística de transportes. “É natural que a relação de complementaridade requisite do Brasil uma infraestrutura moderna para baixar os custos”, diz.

Os chineses já investiram no Brasil, até 2018 (últimos dados consolidados pelo CEBC), US$ 60 bilhões. O agro respondeu apenas por 4% do estoque (2007 a 2018), bem distante dos 51% destinados à mineração, 36% aplicados em energia; transportes ficaram com 3% dos recursos; e 6% foram para outras atividades. “Hidrelétricas estão no topo da preferência deles, e óleo e gás não ficam atrás. Mas é uma questão de oportunidade – como a criada pelos leilões de concessões de energia – a China entrar mais forte em outros setores”, comenta Cariello.

1,4 bilhão de bocas – Os chineses estão presentes nos negócios antes e depois da porteira. Só não estão dentro das fazendas porque estrangeiros não podem ser donos de terras no Brasil, assinala Eduardo Daher, diretor executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag). Seguindo a tendência de aporte de capitais fora da China – por exemplo, a aquisição da suíça Syngenta, líder mundial das sementes e produtos fitossanitários usados para proteger as colheitas, pela ChemChina, dona da Adama, maior fornecedor de fitossanitários genéricos da Europa –, eles começaram a investir aqui na indústria de fertilizantes e de agroquímicos, entre outras.

A operadora chinesa de terminais China Merchants Port (CMPort) comprou no ano passado 90% do Terminal de Contêineres de Paranaguá (PR), ao lado de um dos maiores portos da América do Sul. E, com a queda dos preços dos ativos no Brasil, a expectativa é de crescimento nessas aquisições. “Há uma transformação muito grande no mercado chinês tentando ganhar conhecimento e tecnologia agrícola para produzir alimentos.”

“A razão é muito simples: ninguém no mundo tem 1,4 bilhão de bocas para alimentar”, assinala Daher. Com tanta interdependência, a produção brasileira precisa se adaptar às mudanças do mercado chinês. Além de cumprir exigências sanitárias, tem de estar atenta às tendências nos hábitos, provocadas pela ocidentalização da cultura das novas gerações. A exportação da carne suína não cresceu somente por causa da peste suína africana e do coronavírus, diz Francisco Turra, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA; de suínos e aves). “A China há algum tempo tem no Brasil um fornecedor capaz de suprir sua necessidade de cortes de frangos específicos, como asa, ponta da asa, garras. Atendemos e atraímos a simpatia deles, e as vendas só cresceram”, comemora.

Turra observa o interesse recente dos chineses por produtos mais prontos, com o crescimento da classe média que migra do campo para as cidades. “Aprimoramos nossa exportação para o Japão, países islâmicos e agora para a China, e isso é ótimo para nosso setor. É essa a tendência na produção da proteína animal, aves e suínos, principalmente”, enfatiza. A preocupação é tanta que em junho a ABPA distribuiu aos importadores chineses um vídeo em inglês e mandarim, mostrando os cuidados adicionais nos frigoríficos para combater a pandemia.

Diversificação – Essa adequação deveria ser seguida em outros produtos, segundo Cariello, do CEBC. “Produtores de café poderiam investir em produtos premium para marcar presença em nichos surgidos com a expansão de cafeterias nas cidades, sucesso entre os jovens. Seria um jeito de aumentar a exportação, e não só de café verde”, diz. No segmento de carnes bovinas, os pecuaristas criam o “Boi China”, abatido em 30 meses, após um confinamento rápido. O resultado é uma carne sem muita gordura, já que o mercado chinês está atrás mais da proteína animal, não na gordura embutida.

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) trabalha na expansão da pauta de exportações para a China, negociando abertura de mercado para o camarão e a liberação de plantas de lácteos, já habilitados, e de pescado. “Podíamos viver eternamente do que já exportamos para esse imenso mercado, mas podemos diversificar. Chineses precisam de quantidades grandes de alimentos, e nós somos um ótimo parceiro comercial deles”, afirma Lígia Dutra, superintendente de Relações Internacionais da entidade.

Esse horizonte promissor, entretanto, precisa contar com uma diplomacia brasileira alinhada aos interesses do país, sustenta o presidente da frente parlamentar Brasil-China, deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), referindo-se à “ofensiva da ala olavista do governo e do próprio ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para cima da China”. Segundo ele, o Itamaraty deveria “estar muito mais além de questões pessoais e ideológicas, que podem afetar diretamente o país”. Uma opinião mais que sensata no cenário atual.

 

Por Liliana Lavoratti

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