Por Alfredo Nastari
A China apresentou em 2021 um inesperado crescimento de 8% – dois pontos percentuais acima dos 6% previstos – como resultado em boa medida do comércio de produtos e insumos ligados à pandemia de COVID-19, segmento no qual se notabilizou como país capaz de suprir necessidades mundiais.
Na contramão desta tendência de crescimento, as Duas Sessões acabam de aprovar a meta de crescimento de 5,5% para este ano, o que inevitavelmente desperta temores nos mercados de um esfriamento da economia global. Será este um receio justificado?
Para esclarecer esta questão, China Hoje convidou a professora e pesquisadora Lia Baker Valls Pereira para analisar os desdobramentos deste crescimento em 2022, possivelmente inferior em 2.5% em relação ao ano de 2021.
A professora Lia é Doutora pelo Instituto de Economia da UFRJ, Master of Philosophy in Economics pela Universidade de Cambridge e graduada em Economia pela Pontifícia Católica do Rio de Janeiro. É Professora Adjunta da Faculdade de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Relações Internacionais da UERJ. É Pesquisadora Associada da FGV/IBRE e responsável pela elaboração do relatório da Sondagem Econômica da América Latina, do Boletim de Indicadores do Comércio Exterior e publica regularmente na Revista Conjuntura Econômica. Faz parte do Conselho Científico do Instituto de Estudos Brasil-China (IBRACH) e é Senior Fellow do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. A pesquisadora tem várias publicações na área de comércio e regulação internacional. Nos últimos anos, tem desenvolvido trabalhos sobre as relações Brasil-China e a reforma do sistema multilateral de comércio.
China Hoje – Qual será, na sua opinião, o impacto de um crescimento econômico menor internamente na China?
Lia Valls – Creio que o fato de a China estar desacelerando sua meta de crescimento já estava dentro da programação dos planos quinquenais desde o início dos anos 2010. A ideia é que a desaceleração é necessária para privilegiar outras questões, como uma melhor distribuição de renda, o bem-estar de toda a população e um crescimento harmônico.
De todo modo, penso que essa freada no crescimento econômico não é um grande problema, pois, mesmo 5.5% para um PIB agora já tão grande como o da China, continua sendo muito. E a China é um país que precisa continuar crescendo. Dependendo da medida que utilizamos, a China já é a maior economia do mundo e ainda tem, obviamente, problemas de países em desenvolvimento. Ainda está no processo de urbanização e tem uma parcela da população ainda muito pobre.
China Hoje – Até que ponto o cenário internacional pesou nessa decisão?
Lia Valls – Certamente esta meta de crescimento está considerando um momento de choque decorrente da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, que irá afetar os preços no cenário internacional. Haverá aumento do preço da alimentação, principalmente do trigo e do milho. Tanto Rússia como Ucrânia mais esta, são importantes fornecedoras mundiais de grãos, inclusive para a China.
Neste momento de guerra a produção da Ucrânia, ficará totalmente paralisada. E há a questão do petróleo, também. Penso que esses impactos podem acabar levando a alguma desaceleração até maior. Está tudo muito incerto por enquanto.
China Hoje – Que outros fatores podem ter sido levados em conta?
Lia Valls – Além da questão da guerra, muito preocupante, conviver com a COVID-19 é um desafio que não está afastado. O fato de a China ter fechado cidades, pedaços de cidades e até uma cidade industrial como Shenzen, volta a preocupar porque, cada vez que você faz isso, interrompe novamente a circulação das pessoas e, consequentemente, a produção. A maneira da China de reagir à COVID é muito forte. Ela fecha tudo diante da possibilidade de circulação do vírus e isso tem um impacto muito grande na produção.
China Hoje – E para o comércio com o Brasil? Esses 5,5% são um esfriamento muito grande da demanda das commodities que exportamos?
Lia Valls – O tipo de coisa que a gente exporta para China, quase 80%, é minério de ferro, soja e petróleo. Soja será sempre necessária por causa de alimento. O petróleo, a China também precisa. Se houver uma desaceleração nos investimentos em infraestrutura, aí sim há um efeito sobre a demanda do minério de ferro, que é muito utilizado nas construções com estruturas metálicas, mas não imagino que seja um efeito tão grande, mesmo porque se você contrapõe isso com aumento dos preços das commodities os volumes se equilibram. E ainda temos uma ligeira diversificação da pauta de exportações, principalmente com produtos agrícolas. Então, eu diria que não deve haver um impacto tão negativo.
China Hoje – Como a senhora enxerga a pauta de exportações brasileiras e a exportação de alimentos?
Lia Valls – Ficar exportando apenas soja, minério e petróleo é muito pouco. Talvez seja uma visão otimista, mas temos oportunidades e desafios na área de alimentos, um setor fundamental. À medida que os hábitos da classe media chinesa mudam, vão utilizando mais micro-ondas, por exemplo, podemos exportar mais congelados, sucos, coisas diferentes, Na área de manufatura, é mais difícil. A nossa concorrência com a produção chinesa é muito mais complicada. Creio que essa desaceleração do crescimento afetará pouco nossas exportações. O desafio continua mais estrutural mesmo: como diversificar nossa pauta de exportações.
China Hoje – E quanto aos investimentos chineses no Brasil, como ficam neste novo cenário?
Lia Valls – Temos que chegar a um consenso sobre quais investimentos nós precisamos, investimentos que sejam percebidos como positivos para a integração Brasil-China, e não simplesmente em infraestrutura para atender ao escoamento das commodities brasileiras.
Creio que há muito espaço para isso. Mesmo no setor agrícola os investimentos chineses em construção de silos não são muito falados, mas são muito importantes.
Os chineses têm uma cultura de planejamento, de projeto, e de centralização de decisões. Muitas vezes eles entendem como dificuldades características que fazem parte das nossas regras, como o licenciamento ambiental, por exemplo. Para eles, parecem um ônus muito grande, mas são arestas que precisam ser conversadas.
China Hoje – A China pretende dobrar sua classe média até 2035, incluindo mais de 400 milhões de chineses na faixa de renda média. Na sua opinião, o país corre o risco de cair na armadilha da renda média, isto é, entrar numa fase de estagnação depois de ter atingido um certo patamar, como aconteceu aqui no Brasil?
Lia Valls – Creio que são duas questões. Incorporar mais gente na classe média, na verdade, é ótimo, significa que a população está ascendendo na classe de renda. Essa foi a grande força dos Estados Unidos, exatamente sua classe média, que gerou uma sociedade de consumo de massa. Isso é muito positivo.
Quanto à armadilha da estagnação, o pulo para não cair nela é aprimorar cada vez mais seus conhecimentos em pesquisa, desenvolvimento e em tecnologia. Os chineses têm muita consciência disso. Isso para a China significa não ficar na era conhecida como chão de fábrica, mas ascender nas cadeias de valor e liderar em tecnologia ainda que em alguns setores – não precisa ser em todos.
China Hoje – Nesse sentido, o desenvolvimento baseado em inovação e na economia de baixo carbono, definido pelo 14º Plano Quinquenal, pode, evidentemente, colaborar e será ou não será impactado por um crescimento menor?
Lia Valls – Acho que não impacta. É quase um consenso de que o caminho para o futuro é esse, a economia digital e a economia verde.
A China tem investido em energias renováveis como solar e a eólica, porque, embora ela tenha diversificado sua matriz energética, ainda é muito dependente do carvão, extremamente poluente. E o grande desafio para a China é conciliar seu crescimento com a meta de uma economia de carbono zero até 2060. Você não muda de matriz energética tão rapidamente, são processos longos. Mas a China está no caminho.
O desafio da China, com o tamanho da população que tem, é levar adiante esse projeto e ao mesmo tempo garantir uma melhora do bem-estar da população, incorporando as pessoas ao mercado de trabalho, todas elas, com salários condizentes com uma classe média mais robusta. A China já fez isso em parte do país, mas ainda não como um todo.
China Hoje – E como tudo isso se encaixa com a política de dual circulation da China, isto é, o objetivo do país de se tornar autossuficiente em relação ao mercado externo, fortalecendo o seu mercado interno?
Lia Valls – Creio que ficar totalmente autossuficiente nem deve ser o objetivo da China, mas como estamos vivendo seguidas crises, em especial a de 2008, quando mesmo as grandes economias entraram numa recessão que ninguém podia imaginar, os chineses ficaram alertas para o perigo de uma dependência excessiva das exportações,
Some-se a isso a guerra comercial com os Estados Unidos, sanções, a questão dos semicondutores, disputa na questão de telecomunicações… é obvio que os chineses ficaram de sobreaviso. O que acontecerá se os americanos resolverem cortar o fornecimento de matérias-primas e insumos essenciais? Então, creio que a política de dual circulation é realmente uma reação a esse cenário e os Estados Unidos estão fazendo a mesma coisa, com a política de Joe Biden de fortalecimento das manufaturas. Isso está no mundo como um todo.
Este artigo foi publicado originalmente na 39° edição da Revista China Hoje. Inscreva-se no nosso Clube do Leitor, receba gratuitamente uma assinatura digital e tenha acesso ao conteúdo completo: https://www.chinahoje.net/clube-do-leitor/
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