Neste ano de celebração dos 100 anos do Partido Comunista da China muitos analistas internacionais debatem a nova política externa chinesa e seu impacto sobre a ordem internacional. Este debate tem dois fatores motivadores. O primeiro e o principal deles é a estimativa de que a economia chinesa superará a economia estadunidense antes de 2030. E o segundo fator foi a atuação da diplomacia chinesa, auxiliando mais de uma centena de países no combate à pandemia e na vacinação, em contraste com a atuação da diplomacia dos EUA. Não se trata de uma discussão sobre perfis de liderança do mundo, mas de modelo de governança global para o futuro.
Quando se estuda a história das relações internacionais e do direito internacional, predominam teorias europeias e estadunidenses. A continuar assim, o mundo não será capaz de pensar novas formas de organização das relações internacionais em um contexto de transformação global no qual a China assume um protagonismo inédito em sua história e na história da humanidade.
Parto do pressuposto de que, neste século XXI, nenhum grande problema da humanidade será solucionado sem a participação ativa da China. Desafios relacionados ao meio ambiente, às crises financeiras, à segurança internacional, à saúde pública global, por exemplo, somente serão enfrentados de modo eficaz se houver a contribuição chinesa. Se estamos de acordo com tal pressuposto, então é preciso haver um entendimento e um diálogo constante com a China. Qual o obstáculo para tanto? Pouco se sabe sobre o modo chinês de pensar, de cooperar e de resolver conflitos e como esta abordagem e sabedoria chinesas, refletidas em sua prática diplomática cotidiana, poderão favorecer um novo padrão de diplomacia e de relações internacionais.
O sistema internacional contemporâneo foi estruturado segundo uma visão de mundo ocidental resultante da expansão e colonização europeias em praticamente todos os continentes do mundo e, também, dos desdobramentos das duas guerras mundiais que tiveram a Europa como palco central. A Guerra Fria deslocou o centro de gravidade para fora do continente europeu, mas a vitória dos EUA sobre a antiga URSS significou, em tudo, a afirmação da herança ocidental. Obviamente, há vários aspectos positivos desta herança que foram assumidos pela diplomacia estadunidense. Mas no que diz respeito aos aspectos negativos, permaneceu o uso da força na defesa dos seus interesses nacionais – algumas vezes à revelia do próprio direito internacional. Em 2019, o ex-presidente Trump confessou ao ex-presidente Jimmy Carter sua preocupação com o fato de que a “os chineses estavam se adiantando em muitos aspetos”. Depois de lembrar ao Trump que os EUA desfrutaram de apenas 16 anos de paz em seus 242 anos de história, Carter disse que a “a China não desperdiçou um único centavo com a guerra”.
Se analisarmos com a lupa da história, a declaração de Jimmy Carter nos leva a questionar o porquê de a China não ter a guerra como parte intrínseca de sua política externa. Arrisco dizer que tem sido assim desde tempos dinásticos. Mas o mesmo não se pode dizer dos países estrangeiros cujos ataques à China remontam à dinastia Ming e ganham proporções catastróficas para os chineses no final da dinastia Qing, no século XIX, e se estendem até as primeiras décadas do século XX. Estes fatos deixaram marcas indeléveis na memória e na sociedade chinesa, com repercussões sobre a história contemporânea do país até os dias atuais.
A prioridade para a China é a preservação de sua soberania que depende, por sua vez, da manutenção da unidade nacional. No plano das relações exteriores, esta unidade é garantida por meio da defesa da integridade territorial e, no plano interno, na ênfase da estabilidade social. Unidade nacional, integridade territorial e estabilidade social são objetivos interligados e elementares do PCCh na liderança do país e que ainda não estão integralmente concluídos. Por este motivo, os analistas ocidentais que acham que a China quer dominar o mundo estão equivocados e tomam como referência o modo como o Ocidente se relacionou com outros povos, inclusive com a própria China. Talvez receiam ter ensinado à China uma diplomacia da força que usaram e abusaram quando lhe convieram. Mas os temores ocidentais parecem ignorar as prioridades do presente para a China e que muito provavelmente se estenderão por todo este século.
De 1949, ano de fundação da RPCh, até 1978, quando se inicia a política de reforma e abertura, o PCCh tinha como prioridade organizar a administração do país e romper com a velha diplomacia da humilhação que caracterizara as relações exteriores da China até então, revisando os tratados internacionais que impunham condições desfavoráveis para a China. Em 1955, na Conferência de Bandung, a China assume a defesa de uma ordem internacional baseada nos cinco princípios de coexistência pacífica, quais sejam: o mútuo respeito pela soberania e integridade territorial, a não agressão, não interferência nos assuntos internos, igualdade e mútuo benefício e coexistência pacífica, apoiando o multilateralismo e estabelecendo uma forte amizade com a vasta maioria dos países em desenvolvimento. O critério para as decisões na política externa era a estrita defesa do interesse nacional que consistia na proteção e promoção do seu desenvolvimento econômico. Para tanto, a China deixa de lado questões ideológicas para dar lugar a uma diplomacia de resultados pautada na busca de interesses comuns no diálogo com outros países. Esta é a síntese do pragmatismo chinês.
A partir de 1978 até 2008, a China vê o seu PIB aumentar de 364,5 bilhões de RMB para 30 trilhões de RMB. O rápido e extraordinário desenvolvimento econômico, fruto da bem sucedida política de reforma e abertura, teve que ser acompanhado de uma política externa à altura. É certo que a RPCh aumentou a sua presença no cenário global ao ingressar em mais de uma centena de organizações internacionais, mas o engajamento chinês no sistema econômico internacional era focado na sua adaptação a um padrão de normas e relações internacionais estabelecido sob o signo da “globalização” ocidental. O ingresso da China na OMC, em 2001, é um marco nesta inserção do país no sistema multilateral de comércio. E no ano de 2008, com as Olímpiadas de Beijing, a China parecia celebrar a sua aceitação pelo mundo ocidental. Mas tal grandioso evento também simbolizou o início de uma nova etapa da sua história diplomática.
De 2008 até os dias atuais, a política externa da China tem se revelado mais atuante e presente nos mais diversos assuntos. Além disso, a política externa tornou-se uma dimensão crucial para a continuidade do desenvolvimento econômico do país rumo à meta de se tornar uma nação desenvolvida em meados deste século quando, então, celebrará os 100 anos de fundação da RPCh.
No discurso proferido no Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou no dia 23 de março de 2013, Xi Jinping apresentou pela primeira vez ao mundo o conceito de comunidade de futuro compartilhado, ele apontou que estamos num “mundo em que todos os países se interligam e se tornam interdependentes em um nível sem precedentes. Os seres humanos convivem em uma mesma “aldeia global”, onde a história e a realidade confluem, formando uma comunidade de futuro compartilhado em que cada um tem em si um pouco dos outros”. No meu entendimento, esta é a versão chinesa da “globalização” que, sem deixar de apoiar o livre comércio, defende que o mesmo seja justo e eficiente, mas que, sobretudo, respeite as diferenças entre os povos. A globalização dos anos 90 apregoava a uniformização dos valores e dos padrões de conduta que, em realidade, promovia a “ocidentalização” do mundo. Mas, como disse Xi Jinping, “cada civilização está enraizada em seu próprio solo e cristaliza a sabedoria extraordinária e os ideais de um país e de uma nação, possuindo seu próprio valor de existência.” (Xi Jinping: Governance of China III, p. 544). A diplomacia chinesa não tem como objetivo, portanto, uma sinicização do mundo, mas é contrária à sua ocidentalização forçada.
Como tal conceito se traduz na prática diplomática chinesa? Em primeiro lugar, ele sustenta um método de diálogo e de cooperação que se baseia em consulta mútua (共商), construção conjunta (共建) e compartilhamento dos benefícios (共享). No plano econômico, ele se traduz na iniciativa “Cinturão e Rota” que é o único grande projeto de integração econômica deste século XXI. Baseado na conectividade dos países por meio da infraestrutura, o Cinturão e Rota cria as condições para um efetivo intercâmbio entre os povos, mostrando-se ser mais amplo e aberto que uma simples zona de livre comércio – modelo de integração geralmente preferido pelos EUA – e menos complexo e pesado que o modelo europeu de integração econômica. Por fim, no plano político, o conceito de “construção da uma comunidade de futuro compartilhado” é revelado na defesa de uma maior democratização do sistema internacional. Nas palavras de Xi Jinping, “os países em desenvolvimento devem ter uma maior voz e uma maior representação nesse processo.” (Xi Jinping: Governance of China III, p. 534). Este é um tema crucial para a garantia da paz mundial e dele decorre a defesa do multilateralismo e do fortalecimento das organizações internacionais.
Em seu relatório de trabalho do governo apresentado na 4ª sessão anual da 13ª Assembleia Popular Nacional (APN) em 5 de março de 2021, o primeiro-ministro chinês Li Keqiang declarou: “Trabalharemos ativamente para desenvolver parcerias globais e promover a construção de um novo tipo de relações internacionais e uma comunidade de futuro compartilhado. Continuaremos a seguir a política de abertura e cooperação e trabalharemos para tornar o sistema de governança global mais justo e equitativo.
Por todos estes elementos, a nova diplomacia chinesa aponta para uma reforma do sistema de governança global atual. A China sublinha a relevância das diferenças culturais de cada país, bem como as diferenças de modelos de governança doméstica. O conceito de “construção da uma comunidade de futuro compartilhado” é uma reinterpretação do universalismo ao estilo ocidental e pode inaugurar uma nova época de esclarecimento mundial, para não falar de um novo iluminismo diante de um Ocidente mergulhado, cada vez mais, nas sombras da xenofobia, do populismo, do discurso anti-ciência, da violência, da divisão interna, do protecionismo, do unilateralismo e das fake news.
Por Evandro Menezes de Carvalho. Editor executivo chefe da revista China Hoje. Professor de direito internacional e coordenador do Centro de Estudos Brasil-China da FGV e professor de direito internacional da Universidade Federal Fluminense.
Sem Comentários ainda!