Um olhar pragmático do mundo

Para o embaixador Marcos Caramuru de Paiva, o Brasil deve privilegiar o interesse nacional
Caramuru de Paiva: paixão pelas culturas asiáticas

Marcos Caramuru de Paiva é hoje uma referência no Brasil quando se trata de China. Ex-embaixador brasileiro em Pequim, Caramuru começou sua carreira na Ásia há 17 anos, mais precisamente na Malásia em 2003, onde serviu como embaixador até 2008.

Formado em administração pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pelo Instituto Rio Branco, Caramuru não disfarça seu entusiamo com as economias do continente asiático: “Quando cheguei à Malásia em 2003 o país crescia a 7% ao ano enquanto o Brasil patinava em várias crises”, afirma ele. “Fiquei completamente mesmerizado com o que o então presidente Lula chamava de ´espetáculo do crescimento´ e comecei então a estudar os países asiáticos.” Depois deste período seguiu para Xangai, onde foi cônsul-geral por quatro anos, antes de assumir a embaixada em Pequim, cargo que ocupou até o final de 2018.

Carioca, 66 anos, Caramuru, hoje sócio gestor da Kemu Consultoria, concedeu esta entrevista aos editores Evandro Carvalho e Alfredo Nastari, de China Hoje.

China Hoje – Como era a realidade da China quando o senhor chegou ao país?

Caramuru – Quando cheguei à China, em 2008, o país acabara de aprovar uma lei de contratos de trabalho e os empresários estavam sendo demandados pelo governo a contribuir com a previdência social. Era o primeiro passo de uma China que crescia de forma desorganizada, produzindo a custos baixíssimos, para uma China que se organizava e adotava políticas em benefício dos trabalhadores. Neste mesmo momento veio a crise de 2008 e a China precisou tomar uma série de medidas fiscais para estimular investimentos. Todos imaginávamos que o país fosse dar um passo atrás em relação a essas novas e mais modernas regras, mas isso não aconteceu. As novas políticas foram mantidas e isso é extraordinário. Eu tive o privilégio de acompanhar de perto a China desde esse momento até o atual, em que ela disputa com os Estados Unidos a primazia do desenvolvimento tecnológico.

China Hoje – Nesse período, e olhando um pouco mais para atrás, como os 40 anos de reforma e abertura impactaram a mentalidade do povo chinês?

Caramuru – Creio que o grande marco de referência da história recente da China é, de fato, a Revolução Cultural dos anos 60. Eu enxergo a China dividida entre aqueles que viveram o apogeu da Revolução Cultural e os que viveram a partir do seu período final. Os primeiros já são hoje bem mais velhos, mas os que viveram o período final estão hoje na faixa dos 50 a 60 anos e ainda conviveram com remanescências da Revolução Cultural. Depois, você teve os filhos e as gerações se sucedendo. As transformações e o gap entre as gerações são muito grandes. Os mais jovens são mais abertos ao mundo ocidental, falam inglês e vivem intensamente a tecnologia digital.

Existe ainda uma outra diferença muito grande entre a população urbana chinesa e a rural e não há propriamente uma convivência clara entre elas. As cidades chinesas prosperaram sem bolsões de pobreza significativos, porque não se admite a evasão do campo para as cidades, Essa é uma questão que não requer uma solução mas uma vivência, o contato direto entre a jovem e moderna população urbana chinesa e a população rural, que pouco a pouco vai se urbanizando.

O desenvolvimento das cidades na China chama muito a atenção. Quando você visita cidades centrais do país, como Xi´an, Shenzhen, Guangzhou e uma série de outras, você constata como estas cidades estão se modernizando de uma forma muito interessante, criando núcleos modernos dentro das áreas antigas das cidades. Chama a atenção o como a paisagem urbana chinesa está se transformando.

China Hoje – E quanto ao chinês das zonas rurais?

Caramuru – Creio que ainda existe um enorme fosso entre o chinês rural, aquele que fala alto – porque no campo você tem que falar alto com as pessoas – e que não tem os hábitos dessa nova população urbana mais moderna. É uma pena, mas muitas vezes a população mais moderna rejeita hábitos e tradições.

China Hoje – Como o senhor compara esse desenvolvimento das cidades e da mentalidade chinesa com o Brasil?

Caramuru – Quando você olha um cidadão urbano brasileiro moderno é até uma coisa curiosa, porque a sociedade brasileira é uma sociedade muito mais diversificada do ponto de vista étnico. Sociedades americanas, de uma maneira geral, incorporam os afro-americanos, europeus, orientais, as populações indígenas etc. A sociedade chinesa é muito mais uniforme, sobretudo nas grandes cidades, porque as minorias chinesas ficam longe, distantes dos grandes centros.

Apesar disso, o comportamento dos jovens brasileiros, a maneira de se vestir, é muito mais uniforme do que o da sociedade chinesa, individualmente muito mais diversificado. Isso talvez se deva precisamente pelo fato de terem essa maior unidade étnica e de mentalidade. O jovem chinês busca na sua maneira de vestir e de ser a expressão da sua individualidade.

China Hoje – E quanto ao empresariado brasileiro, a percepção que têm da China evoluiu?

Caramuru – Creio que essa percepção também varia de acordo com a geração do empresário. Um empresário mais velho, sobretudo do setor industrial, que perdeu muita força na vida brasileira se indaga sobre como a China conseguiu produzir e crescer tanto e nós não chegamos lá. Em geral, ele dá a si mesmo a resposta errada: “é porque a China é um regime fechado em que as coisas acontecem de acordo com instruções muito rígidas”, ou “porque tem subsídios exagerados”, ou “porque tem vantagens exageradas dadas ao segmento empresarial”. Ou seja, respostas que fazem pouco sentido se você conhecer a realidade da China em maior profundidade.

Já um empresário mais jovem, que está atualizado na tecnologia digital, olha para a China como quem quer conhecer e incorporar aquelas realidades e, de alguma forma, imitar ou fazer associações com eles. Creio que há problema geracional.

China Hoje – Como é que o senhor vê a relação empresarial Brasil-China, especificamente no setor industrial?

Caramuru – Falando exclusivamente do setor industrial – vamos separar a agricultura e o setor de serviços – é obviamente impossível competir com a indústria chinesa. Não só o Brasil, o mundo inteiro teve essa dificuldade. De fato, a China começou seu desenvolvimento industrial com salários baixos e nenhuma obrigação previdenciária, mas foram avançando. Hoje pagam salários bem mais altos, pagam obrigações previdenciárias, estão obrigados a seguir a regulamentação ambiental (nem todos seguem, mas em todo lugar do mundo é assim). Eles saíram na frente e conseguiram atingir uma certa modernidade. Mas o que mais chama a atenção no setor industrial da China é que ele efetivamente avançou muito mais que o Brasil nas áreas de robótica, inteligência artificial etc. É claro que a grande maioria das fábricas chinesas – assim como as brasileiras – ainda não incorporaram essa modernidade tecnológica. Creio que se nós soubermos encontrar alguma forma de diálogo, de troca de experiências, será algo muito interessante.

China Hoje – No final dos anos 1970 Brasil e China tinham PIB semelhante. Quais foram, na sua opinião, as diferenças de política econômica que propiciaram um crescimento tão díspar dos dois países?

Caramuru – Eu sempre digo que existe uma diferença fundamental em termos de política econômica entre a China e o Brasil. Nós nos concentramos muito nas políticas macroeconômicas e de certa forma deixamos de lado as políticas microeconômicas, que ficaram muito concentradas na proteção do empresário seguindo o antigo sistema de substituição de importações. Na China, creio que houve, do ponto de vista de políticas públicas, uma combinação mais saudável entre o macro e o micro.

O segundo ponto é que foi amadurecendo e ficando cada vez mais evidente a ideia de que os setores estratégicos da economia deveriam ficar em mãos das empresas estatais, enquanto os setores menos estratégicos, mas que trazem a modernidade, deveriam ser entregues à iniciativa privada. Essa é uma combinação bem interessante na realidade chinesa.

Aí surge um outro ponto relevante: ao criar empresas estatais, a China nunca permitiu empresas monopolistas, sempre criou várias estatais para competirem entre si. Existem quatro ou cinco empresas de petróleo na China. Ao invés de criar uma única empresa para construir aviões, criou duas, a AVIC I e a AVIC II, que competem entre si para ver quem se sai melhor. Essa característica do modelo chinês de criar concorrência entre estatais é muito diferente do Brasil, que vê nas estatais uma empresa monopolista ligada ao Estado. Algumas até são de capital misto, como Banco do Brasil e a Petrobras, mas as estatais puras são monopolistas.

Finalmente, outros dois pontos que me parecem muito positivos: primeiro, o fato de na China os governos locais e o governo federal pertencerem à mesma estrutura política facilita ao governo federal lançar iniciativas e canalizar recursos para as prefeituras, deixando que elas concorram entre si para gerar zonas de desenvolvimento tecnológico, polos industriais, etc. Isso no Brasil é impossível, dada nossa estrutura política.

Um último ponto é a estrutura tributária. Na China, quem coleta o imposto é a subprefeitura, ou seja, existe uma interação muito direta entre o bairro e a arrecadação de impostos, que gera os estímulos e atração de empresas e investimentos. Isso é muito diferente de qualquer outro lugar do mundo.

China Hoje – E como o senhor enxerga o futuro do comércio bilateral entre Brasil e China?

Caramuru – Eu vejo o futuro como uma continuação do presente, não prevejo grandes mudanças estruturais. Creio que nós continuaremos a exportar commodities, como soja, algodão, açúcar, minério de ferro, petróleo, madeira, celulose etc. No caso do petróleo, as empresas chinesas investiram na extração de petróleo no Brasil, então é natural que aumentem suas exportações para a China.

Muitas vezes tenho ouvido comentários de que estaríamos criando uma dependência indesejável em relação à China e que deveríamos diversificar nossos mercados. Creio que essa diversificação não é possível porque não há economia do tamanho da China para absorver o tamanho da produção que temos nessas áreas. Só economias muito grandes podem absorver o que produzimos. Você estar mais concentrado em um comprador é um fato da vida, uma realidade com a qual muitos países têm que conviver. Veja o próprio caso da China: o pais tem pouco mais de US$ 3 trilhões em reservas. Onde ela investe essas reservas? No tesouro americano, porque não existem outras alternativas deste porte no mundo.

Li Yang (ao centro), consul geral no RJ: atividade intensa.

China Hoje – A disputa comercial e por hegemonia entre Estados Unidos e China pode modificar este futuro?

Caramuru – A disputa entre China e Estados Unidos até o momento nos tem favorecido porque fez aumentar muito nossas exportações de soja quando a China deixou de comprar dos Estados Unidos. Conseguimos melhorar também nossa participação no algodão de forma significativa.

A disputa, contudo, nos prejudica quando provoca um impacto muito forte sobre os mercados financeiros e nós acabamos perdendo porque os investidores ficam menos dispostos a tomar riscos e acabam saindo do país. Ou seja, ganhamos do ponto de vista comercial – e o ganho não é desprezível – mas perdemos do ponto de vista de atração de investimentos como um todo.

China Hoje – Este quadro de conflito com os Estados Unidos tende a arrefecer ou se acirrar?

Caramuru – Penso que esse cenário de disputa vai permanecer por muito tempo, porque é uma disputa por liderança mundial. E o melhor que podemos esperar é que ela continue se desenrolando em um ambiente de paz, que ela não crie ameaças à paz. A transição de poder hegemônico do Reino Unido para os Estados Unidos no século 20 foi à custa de duas guerras mundiais e uma grande crise financeira, foi muito dolorosa. Creio que a melhor expectativa que podemos ter é que essa nova transição agora, que considero inevitável, não gere situações de conflito e faça com que as populações sintam isso de uma forma muito profunda.

China Hoje – E qual é a dimensão real dessa crise hoje?

Caramuru – Nós temos que saber fazer uma distinção muito grande entre a guerra verbal e a realidade. A guerra verbal, que o presidente Trump sabe usar como ninguém, gera um ambiente muito negativo. A realidade, contudo, não é tão negativa assim, porque, bem ou mal, o comércio entre a China e os Estados Unidos é grande e a China ainda tem uma carta extraordinária na manga, que é a abertura do sistema financeiro e do mercado de capitais do país. O sistema financeiro não é um small player dos Estados Unidos, ele é determinante em uma série de áreas e mira a realidade chinesa com muito interesse e muito apetite. E os chineses estão sabendo usar isso de uma forma muito inteligente, porque essa abertura vai se dando pouco a pouco.

“O quadro de disputas entre China e Estados Unidos deverá permanecer por muito tempo, pois é uma disputa por liderança mundial. E o melhor que podemos esperar é que ela não traga ameaças à paz.”

China Hoje – Na sua opinião, quais são então os pontos com maior potencial de atrito?

Caramuru – As cartas que podem embaralhar este jogo e criar situações limites são, efetivamente, Hong Kong e Taiwan, porque esses são temas centrais da política externa chinesa. Até o momento acho que a China teve um bom êxito na administração da disputa ao limitar as divergências e acordos com os EUA à questão comercial, que ela domina bem. As demais áreas que virão pela frente são mais árduas para a China, porque envolvem tecnologia e políticas públicas. É impensável imaginar que a China irá mudar suas políticas públicas por um acordo bilateral com os Estados Unidos, como também não irá abandonar seu esforço de geração de tecnologia.

China Hoje – Como o resultado das eleições presidenciais americanas em novembro pode alterar esse quadro?

Caramuru – A realidade política pode mudar se Trump não for reeleito. Não que os democratas não terão uma política de contenção da China, eles continuarão tendo. Acho até que as políticas democratas no passado foram muito mais inteligentes e muito mais difíceis para a China, com o TPP (Aliança Transpacífico) e outros. A do Trump é mais aberta.

O risco maior é um acirramento de tal maneira que todos os países do mundo – não apenas o Brasil, mas europeus, asiáticos – sejam levados a escolher entre um lado ou outro. Esse é um dilema que ninguém quer ver. Por isso, creio que todos os países têm que ser mais ativos e criar um ambiente onde essa escolha não venha a existir.

China Hoje – O senhor acredita que o governo Bolsonaro já tenha feito essa escolha?

Caramuru – Não. A política externa brasileira no governo Bolsonaro, vamos dizer assim, não tem propriamente um rumo que você possa identificar como definitivo. Existe um segmento mais ideológico ligado ao governo que, sim, fez a escolha antes mesmo que a pergunta fosse formulada. Mas este grupo não é o único. Existem outros segmentos como o da ministra Tereza Cristina, ou o próprio vice-presidente, Hamilton Mourão, que tem uma visão mais aberta em relação à China. O presidente fica em meio a essa realidade e até o momento a opção dele foi construtiva no relacionamento com a China.

Há um problema no fato de o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, fazer parte do grupo que aparentemente optou por outra direção, o que o coloca em um risco muito grande, que é o de ver suas posições não serem levadas em conta ou não prevalecerem. Creio que, enquanto existir o governo Bolsonaro, nós vamos continuar convivendo com esse cenário de duas tendências. Mas, a exemplo dos Estados Unidos, business is business, tem uma força própria que move as políticas de uma forma muito mais intensa do que a visão ideológica de alguns.

China Hoje – Como essa polarização existente no governo Bolsonaro pode influir na escolha do sistema 5G para o Brasil?

Caramuru – Esse é um ponto central deste dilema entre visão ideológica e visão pragmática. A ala ideológica está aparentemente ativa, mas a visão prática prevaleceu até o momento, porque a licitação aberta não impõe nenhuma restrição à tecnologia chinesa. É verdade que os ideológicos continuam fazendo muita pressão, mas acho pouco provável que esta posição prevaleça. Faz parte da própria licitação buscar preços e qualidade.

Um segundo ponto é que a Huawei tem competitividade. Já está aqui há muito tempo, domina grande parte das antenas 4G, tem boa tecnologia e terá uma certa facilidade em fazer a migração para o 5G. Qual argumento que sobra para área ideológica? Essencialmente repetir uma política norte-americana? Existem no Brasil segredos industriais ou situações estratégicas a serem protegidas? Sinceramente, creio que existem maneiras de se lidar com isso, como estão fazendo muitos dos países europeus.

China Hoje – Esse embate entre as duas alas do governo Bolsonaro pode levar a uma paralisia das decisões sobre o 5G e outros temas relevantes?

Caramuru – De fato, é difícil para nós, brasileiros, lidar com essa realidade porque temos a impressão de que o governo briga permanentemente. Todo governo tem brigas internas, governar é assim mesmo, mas em algum momento o governo fixa uma posição e todos se alinham em torno dela. Nós temos uma realidade aqui em que as posições do governo Bolsonaro não são propriamente fixadas, ficam no ar e todos ficam sem saber qual rumo será tomado.

É uma nova maneira de ser, de pensar as políticas públicas que é muito complicada para quem está de fora esperando uma posição uníssona em torno dos temas. Divergências sempre existirão, mas é necessário que prevaleça claramente uma realidade. No caso brasileiro, penso que a visão pragmática irá se impor, sem dar muito espaço a visões puramente ideológicas.

China Hoje – As relações entre Brasil e China são, então, sólidas o suficiente para subsistirem?

Caramuru – Nossa relação com a China é uma relação muito baseada no pragmatismo do comércio, que é importantíssimo para o Brasil, importantíssimo para a China também, porque a China precisa ter esses produtos que nós exportamos para ela, ela não pode abrir mão desse comércio com o Brasil. A área de investimentos, que também é importantíssima para os dois lados. Cerca de 50% a 60% dos ativos no exterior das grandes empresas chinesas de energia, como a State Grid ou a Three Gorges, estão no Brasil, em empresas absolutamente estratégicas como a CPFL. Então, é possível ver que independentemente da qualidade do diálogo que se tem, ou de quantas vezes as autoridades se reúnem, nós temos efetivamente uma parceria estratégica. Se você olha o conjunto, as necessidades de ambos os países no comércio e no investimento, ela é uma parceria estratégica.

China Hoje – Dentro deste contexto de estabelecer relação pragmática com a China, que importância o senhor atribui ao Fórum para a Cooperação Econômica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, o Fórum de Macau?

Caramuru – Macau é relevante no contexto da relação Brasil-China? Não, não é, mas pessoalmente tenho muita simpatia pelo Fórum de Macau e durante o período em que estive na embaixada fiz todo o possível para nos integrarmos de uma forma mais positiva com Fórum de Macau.

O Brasil tem uma relação própria com demais países de língua portuguesa e não precisa da China para isso. Mas faz parte da política externa chinesa criar círculos nos quais ela vai se inserindo (China-Europa, China Ásia, China-América Latina, etc.) que trazem vantagens que não podem ser desprezadas. No caso do Fórum de Macau, ele é uma porta de entrada para pequenos empresários que querem penetrar na China. Macau tem recursos, tem grande boa vontade e nós não estamos sabendo explorar adequadamente esta oportunidade.

Produtos brasileiros na 24a Feira Internacional de Macau.

China Hoje – Mas Macau tem atualmente uma grande importância estratégica dentro da China.

Caramuru – Sim, Macau está se transformando de uma forma muito vigorosa, baseada na ideia chinesa de criar corredores econômicos, como o de Pequim-Hebei, o de Xangai e delta do Rio Yangtsé e o corredor sul, importantíssimo, que integra Shenzhen, Macau, Zhuhai, Hong Kong e Guangzhou, mesmo porque os chineses decidiram que Shenzhen será a grande vitrine da China moderna. A integração de Macau nesse corredor vai ser muito positiva. Você anda hoje em Macau e Zuhai e já não sabe qual é uma qual é outra cidade, são muito próximas. E Macau tem como vantagem um setor público de muito boa qualidade, muito competente. Macau está buscando uma vocação para além de ser um centro de entretenimento, uma Las Vegas chinesa. Na minha opinião, o potencial de Macau não deve ser subestimado pela qualidade do seu setor público, por estar numa escala menor que a China, portanto mais fácil, e por ter uma certa autonomia em relação à China. Macau faz parte do grande conceito “um pais, dois sistemas”.

“Divergências dentro de governos sempre existirão, mas é necessário que prevaleça claramente uma realidade. No Brasil, penso que a visão pragmática irá se impor, sem dar muito espaço a visões puramente ideológicas.”

China Hoje – Quais são as perspectivas de o Brasil vir a integrar a Iniciativa Cinturão e Rota?

Caramuru – Eu sempre usei um argumento com as autoridades chinesas: se o Cinturão e Rota busca incentivar investimentos de infraestrutura nos países onde ele vai, então nós não teríamos propriamente uma razão para aderir porque a China já investe muito em infraestrutura no Brasil sem a necessidade de uma adesão. Muitos países aderem ao Cinturão e Rota porque acham que vão ganhar alguma coisa. O Brasil não precisa aderir o Cinturão e Rota para ganhar alguma coisa, portanto a questão é entender a profundidade da proposta chinesa, até onde ela vai com este projeto, que é bastante ambicioso – chega a falar até na coordenação de políticas.

A atual odem internacional foi votada em conferências multilaterais com o princípio, embora altamente duvidoso, de cada país um voto. Do ponto de vista teórico, eram iguais os votos de um país pequeno ou poderoso.

O que a China está propondo no Cinturão e Rota é um procedimento completamente diferente, típico da cultura chinesa. O Cinturão e Rota funciona como a mesa de jantar chinesa, em que o anfitrião olha e pensa o que é que todo mundo quer comer e escolhe uma porção de coisas variadas. Cada convidado vai se servindo com o que achar melhor, mas é o anfitrião que escolhe, ele não pergunta aos convidados o que eles querem comer.

Esse método de trabalhar é a nova inserção da China no mundo. Difícil para os países aceitarem isso, porque é assim que ela faz: vocês podem ir me dizendo o que pensam e coisa e tal, mas eu apresento uma nova proposta. Todas as reuniões são na China, todos os foros das reuniões do Cinturão e Rota são presididas por chineses. É um problema cultural com o qual o mundo terá de se habituar à medida que a China vai se tornando um país importante, e certamente se tornará cada vez mais. A China já é importante e vamos ter de nos habituar a esses novos conceitos de organizar a relação internacional.

China Hoje – Mas não haverá resistências ao Cinturão e Rota devido a esse modo chinês de conduzir o projeto?

Caramuru – É difícil para alguns países se adaptar a isso e tentar entender como funciona. Eu não desconsidero a preocupação daqueles que se interrogam sobre “mas como é isso? Como é que vai funcionar isso? O que significa isso?” e como é que se adere a esse novo conceito.

Mas conhecendo a China como eu conheço, tenho sempre a impressão de que tudo no final vira algo muito pragmático. Como investir mais, como ganhar mais dinheiro, como fazer com que as empresas tenham mais conexões. Esse conceito do anfitrião que ordena o menu numa mesa não me atrapalha, talvez por que eu entenda a China. Pessoalmente olho e digo “está ótimo, pode aderir porque os riscos são muito baixos”.

As pessoas que conhecem mais a China talvez entendam melhor esse processo. Quem não conhece, de fato, levanta muitas dúvidas sobre isso. É uma questão de tempo, creio que o Cinturão e Rota vai se consagrar como uma iniciativa no novo mundo, na nova realidade. E o Brasil vai acabar aderindo, porque não há como não aderir.

China Hoje – Como o senhor avalia o impacto da pandemia da COVID-19 na imagem da China?

Caramuru – Creio que a China sai internamente fortalecida, porque o chinês comum acredita que a ação do governo foi determinante, incisiva e desempenhou uma liderança muito positiva. Cada vez mais ele acredita nisso quando olha o que aconteceu no Ocidente. Externamente a China saiu algo fragilizada porque muitas questões sobre a início e o desenvolvimento da epidemia permanecem em aberto. O país tem feito um esforço diplomático, sobretudo com países menos desenvolvidos, mandando equipamentos, médicos e toda a assistência possível, inclusive financeira. O presidente Xi Jinping anunciou um fundo de US$ 2 bilhões para ajudar países de menor desenvolvimento relativo. Mas ela sai um pouco fragilizada.

China Hoje – E como deverá ficar a ordem internacional no mundo pós-pandemia?

Caramuru – A primeira e grande pergunta que se coloca é se a ordem internacional que vai se estabelecer depois da COVID-19 será uma ordem cooperativa ou conflituosa. A China claramente prefere uma ordem cooperativa, enquanto os norte-americanos parecem preferir uma ordem mais conflituosa. Basta ver as declarações e atitudes para constatar isso.

Se vai prevalecer esse cenário conflituoso, não se sabe, mas se for uma ordem cooperativa a pergunta seguinte é: quem vai assumir a liderança nessa cooperação, no desenho dos mecanismos de cooperação. E eu acho que a China terá um papel a desempenhar mas essa liderança somente será efetiva se for menos individualizada e mais coletiva, se envolver os países da União Europeia como um todo e outros países de relevância no mundo, como Brasil, Austrália, os próprios asiáticos, etc.

É uma costura difícil, não é uma costura simplesmente de você se apresentar como liderança e dizer “agora venham comigo”, porque isso não vai funcionar, não funcionaria em nenhum dos casos e também não funcionaria se os Estados Unidos tomassem essa atitude. Eu acho que essa atitude terá de ser de construção de um projeto em que todos estejam envolvidos. Alguns países poderão ter mais força e a China tem até alguma chance, mas ela terá de entender que isso não é apenas uma questão de liderança, é a construção de um esforço coletivo que será tão mais viável, e tão mais aceitável, e tão mais eficiente quanto mais ele aparecer no mundo como um esforço coletivo e não o desejo de um país exercer um papel predominante de liderança.

China Hoje – E qual deve ser a posição e o papel do Brasil neste novo cenário?

Caramuru – Creio que não há alternativa ao Brasil se não reconhecer que o século 21 será asiático, como o 19 foi europeu e o século 20 foi americano. E acho também que não devemos ficar simplesmente remoendo questões ou fragilidades que encontramos na realidade atual ou mesmo no passado. A realidade atual é boa, ela é sólida. O que a gente tem de fazer é abrir o leque, olhar mais abertamente para oportunidades que estão por aí, e elas são muitas.

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